Ao julgar
a repercussão geral no Recurso Extraordinário 851.108, cujo acórdão foi
publicado em 20/4/2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a seguinte tese:
"É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas
hipóteses referidas no artigo 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a
intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo
constitucional".
Reputou-se
ilegítima, portanto, a instituição de ITCMD, pelos estados e Distrito Federal,
sobre as doações realizadas por doador residente no exterior (não se examinará
a transmissão causa mortis, também açambarcada nesse julgamento), enquanto não
editada a lei complementar prevista no artigo 155, §1º, III, "a", da
Constituição da República.
Naquele
julgamento, o STF "...modulou os efeitos da decisão, atribuindo-lhes
eficácia ex nunc, a contar da publicação do acórdão em questão, ressalvando as
ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se
discuta: (1) a qual Estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD,
considerando a ocorrência de bitributação; e (2) a validade da cobrança desse
imposto, não tendo sido pago anteriormente".
Diante
disso, poder-se-ia, em súbito de vista, chegar à seguinte conclusão, que
poderia ser reputada até mesmo óbvia: desde a publicação dessa decisão,
ocorrida em 20/4/2021, e enquanto não for editada lei complementar, as doações
que forem realizadas por doadores residentes no exterior estão salvaguardadas
da exigência de ITCMD. Uma "janela de oportunidade", portanto, para
que doações sejam realizadas, inclusive no bojo de planejamentos sucessórios
envolvendo doador residente no exterior, sem a incidência do aludido imposto
estadual.
Os
próximos capítulos, contudo, revelam que esta suposta obviedade inexiste.
Primeiro
porque aquele acórdão ainda não transitou em julgado. Em segundo embargos de
declaração opostos pelo estado de São Paulo, esse estado insiste para que a
modulação dos efeitos do acórdão seja alterada, eliminando-se as ressalvas
aplicáveis às doações realizadas antes da prolação do acórdão. Assim, a
princípio nenhum impacto haveria sobre as doações realizadas após 20/4/2021 e
enquanto não editada lei complementar pelo Congresso Nacional.
Segundo
porque, como o STF decidiu a matéria em sede de repercussão geral (em controle
difuso de constitucionalidade e cujos efeitos são vinculantes apenas aos juízes
e tribunais, nos termos do artigo 927 do Código de Processo Civil), continuam
vigentes as leis estaduais que exigem o ITCMD sobre as doações realizadas por
doador residente no exterior (para donatário residente nos respectivos estados,
por exemplo, ou, quando o doador e o donatário residirem no exterior, na
hipótese em que o ato de transferência ocorrer em determinado estado, a
depender do disposto em cada lei estadual).
Assim,
ausente lei que vincule a autoridade administrativa competente, ela está
obrigada a realizar o lançamento, exigindo o ITCMD que deixar de ser recolhido
em razão de doações que forem realizadas nas aludidas hipóteses. Todavia, estes
lançamentos estariam fadados a serem anulados pelo Poder Judiciário, em razão
da vinculação ao sobredito precedente proferido em sede de repercussão geral,
sendo o ajuizamento de uma medida preventiva também uma possibilidade a ser
avaliada.
Terceiro
porque, em maio de 2021, logo após a publicação do aludido acórdão, o
procurador-geral da República ajuizou 24 ações direitas de
inconstitucionalidade perante o STF (Adins 6.817 a 6.840), requerendo a
declaração de inconstitucionalidade das leis estaduais de 24 estados que
continuam exigindo o ITCMD sobre doações realizadas por doador residente no
exterior.
Todavia,
a pedido do próprio procurador-geral da República, quando teve início o
julgamento de parte dessas ações, alguns votos declaravam a
inconstitucionalidade das leis estaduais, porém com efeitos ex nunc, a partir
da publicação dos respectivos acórdãos e sem qualquer ressalva com relação a
ações propostas anteriormente.
Isto
acendeu um alerta, pois representaria uma integral alteração da modulação dos
efeitos que havia sido realizada, pelo próprio STF, por ocasião do julgamento
do RE 851.108. Se os julgamentos das Adins fossem concluídos nesse sentido, o
ITCMD seria devido sobre doações realizadas mesmo após a publicação do acórdão
proferido nos autos daquele recurso extraordinário, assim como sobre as
operações que eram objeto de questionamento judicial antes da prolação daquele
acórdão. Seria concretizado, pois, o cenário almejado pelos estados, em que o
próprio STF faria tábula rasa do precedente por ele firmado em sede de
repercussão geral.
Essa
situação kafkiana não se concretizou, pois no último dia 18 de fevereiro, ao
julgar 14 das aludidas ações [1], a Suprema Corte (inclusive após ajuste dos
votos acima referidos) declarou a inconstitucionalidade das leis estaduais,
modulando-se os efeitos a partir do acórdão prolatado no RE 851.108 (a partir,
portanto, de 20/4/2021), com as mesmas ressalvas para as ações judiciais
aforadas antes daquela data.
Assim,
retorna-se ao questionamento formulado no título deste artigo: a controvérsia
está resolvida? Sendo um pouco mais específico: o ITCMD pode deixar de ser
recolhido por ocasião das doações realizadas, por doador residente no exterior,
desde 20/4/2021 e até que seja editada lei complementar?
Aos
estados cujas leis acabam de ser declaradas inconstitucionais em sede de
controle concentrado, com efeitos a partir de 20/4/2021 e ressalvando-se as
ações ajuizadas até aquela data nos termos fixados pelo acórdão, o
"jogo" está praticamente encerrado. A exigência do ITCMD deixa de ter
fundamento legal (enquanto não editada a lei complementar e, feito isso,
reinstituído o aludido imposto sobre a hipótese em comento por novas leis
estaduais), sendo bastante improvável a reversão da decisão e dos critérios de
modulação em eventuais embargos de declaração que podem ainda ser opostos.
Todavia,
nos estados cujas Adins ainda pendem de julgamento, as leis estaduais continuam
vigentes e, portanto, a doações realizadas por doador residente no exterior
ainda podem dar ensejo à incidência do ITCMD.
É bem
verdade que dificilmente a orientação do STF será alterada, de modo que aquelas
leis estaduais também devem ser declaradas inconstitucionais com efeitos a
partir de 20/4/2021, o que deve provocar a anulação de eventual lançamento que
seja realizado, relativamente a operações realizadas após aquela data e
enquanto não editada lei complementar que permita a hígida instituição do ITCMD
colhendo a hipótese em comento.
Sem
embargo, é induvidoso que cada situação concreta merece um detido exame,
avaliando-se a estratégia a ser adotada, tendo em vista não apenas à exigência
do ITCMD, mas também o cumprimento de obrigações acessórias e a possível
exigência de apresentação do comprovante de recolhimento do imposto por órgãos
de registro, que pode inclusive inviabilizar a concretização da operação.
E
esperemos que na lei complementar que provavelmente será editada pelo Congresso
Nacional não haja nenhuma ilegítima tentativa de se "virar o jogo no
tapetão", com disposições que pretendam lhe imprimir efeitos retroativos
para permitir que os estados exijam o ITCMD a partir de 20/4/2021. Neste
cenário haveria flagrante inconstitucionalidade e frontal inobservância à
orientação do STF. Porém, na terra em que se costuma dizer que "até o
passado é incerto", o alerta é sempre válido.
Por fim,
a sequência de eventos acima retratada revela a necessidade premente de norma
geral prever um procedimento a ser adotado pelos estados e municípios para que
suas respectivas autoridades lançadoras também se vinculem às matérias
decididas definitivamente pelo STF ou STJ (neste caso em matérias de caráter
infra constitucional), em sede de repercussão geral ou recurso repetitivo, nos
moldes do artigo 19 da Lei 10.522/02, com redação dada pela Lei 13.874/19 (cuja
aplicação pela administração tributária federal merece críticas, mas que já
representa um avanço).
É um
contrassenso que, julgada uma matéria em sede de repercussão geral, o próprio
STF tenha que ser assolado com duas dezenas de novas ações direta de
inconstitucionalidade com a mesma matéria, que em tese podem inclusive provocar
uma mudança na orientação do entendimento que acabara de ser firmado (o que,
conforme se revelou, chegou a se aventar, com relação à modulação dos efeitos).
A essas ações se somam ainda as inúmeras demandas individuais propostas em face
dos estados para que o Poder Judiciário determine o cumprimento do precedente
do STF, enquanto as ações de controle concentrado não são julgadas.
O
resultado é apenas um: após quase um ano da publicação do aludido acórdão pela
Suprema Corte, a insegurança jurídica perdura, porém, com o julgamento das
ações diretas de inconstitucionalidade, parece-nos que a controvérsia está
chegando ao seu final.
_____________
[1] ADI
6.817/PE; ADI 6.821/MA; ADI 6.822/PB; ADI 6.824/RO; ADI 6.825/RS; ADI 6.827/PI;
ADI 6.829/AC; ADI 6.831/GO; ADI 6.832/ES; ADI 6.834/CE; ADI 6.835/BA; ADI
6.836/AM; ADI 6.837/AP; ADI 6.839/MG. Pendem de julgamento as Adins propostas
em face das leis estaduais dos estados do Paraná (ADI 6.818); Pará (ADI 6.819);
Tocantins (ADI 6.820); Santa Catarina (ADI 6.823); Rio de Janeiro (ADI 6.826,
cujo julgamento virtual está em curso); Alagoas (ADI 6.828); São Paulo (ADI
6.830); Distrito Federal (ADI 6.833); Mato Grosso (ADI 6.838); Mato Grosso do
Sul (ADI 6.840).
_____________
Felipe Fleury é
professor de Direito Tributário no Ibet, mestre em Direito Administrativo pela
PUC-SP, especialista em Direito Tributário pelo Ibet e advogado.
Fonte: Conjur