Prescreve o artigo 156, II, da
Constituição Federal de 1988 (CF/88), que compete aos municípios instituir
imposto sobre "transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato
oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais
sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como de cessão de direitos a sua
aquisição". O Código Tributário Nacional (CTN), por sua vez, repete
esses termos em seu artigo 35, assim como a Lei Municipal Paulista 11.154/91. O
fato gerador engloba não só a efetiva transmissão do direito de propriedade
imobiliária, mas também "a cessão de direitos decorrentes de
compromisso de compra e venda".
No contexto deste tributo, muito
se indagou sobre o momento de sua incidência, especialmente à vista de
legislações que buscam antecipar indevidamente a arrecadação e em subversão do
próprio fato gerador. Neste aspecto temporal, o Supremo Tribunal Federal fixou
a tese, com repercussão geral, segundo a qual: "o fato gerador do
imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com
a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o
registro" (ARE 1,294,969, relator Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em
11/02/2021).
A interpretação do Supremo se
fundou no artigo 1.245 do Código Civil que assim disciplina a matéria: "transfere-se
entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro
de Imóveis", combinando-o com o disposto no artigo 110 do CTN.
Com base nesta exegese, o
nascimento do ITBI fica condicionado ao efetivo registro imobiliário da
transação, sendo incompatível com as normas gerais de direito tributário a
previsão em Lei Municipal de exigência do tributo antes de se efetivar o ato ou
contrato sobre o qual incide. Trata-se aqui de antecipações legais ilegítimas e
indevidas do momento da incidência tributária.
Como consequência imediata deste
entendimento, verifica-se que é igualmente inadmissível que haja cobrança de
multa e juros sobre os valores de ITBI supostamente devidos da data do acordo
da operação não-registrada. Ora, se o ITBI só é devido quando do registro no
cartório do imóvel, mesmo que o contrato (de gaveta) tenha se dado em outros
tempos, o fato gerador do ITBI só ocorreu com a transferência efetiva da
propriedade, ou seja, com o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Deste
modo, não há possibilidade de se tomar a data da transação (engavetada) como
referência nem tampouco aplicar multa quando do registro considerando
retroativamente os efeitos do registro à data do acordo da transação, ainda que
a data esteja referida e disposta expressamente nos documentos identificando a
transação. Conclui-se que a data no documento é irrelevante para fins de
incidência do ITBI, o que é corroborado com os citados precedentes do STJ.
Por outro lado, será devida a
incidência de correção monetária, em virtude do transcurso de tempo entre
transação e o registro do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis, conforme
interpretação da jurisprudência do artigo 97, §2º [1], do CTN.
A jurisprudência vem admitindo
esta tese em todas as suas instâncias, exigindo apenas que o valor venal seja
comparado com o valor do negócio devidamente atualizado, pelo IPCA-E, desde a
sua celebração e até o registro. A título exemplificativo, vide decisão do
Tribunal de Justiça:
"REEXAME NECESSÁRIO —
Mandado de Segurança — ITBI sobre imóvel arrematado em leilão judicial. 1)
Preliminar de inadequação da via eleita afastada. 2) A base de cálculo para
efeito de ITBI, à luz do que dispõe o artigo 38 do CTN, é o valor dos bens ou
direitos transmitidos, que se encontra revelado no valor da arrematação —
Precedentes do STj. 3) Pretendida cobrança do tributo com base no valor
"venal de referência" instituído pela Lei Municipal nº 14.256/2006 -
Impossibilidade - Declaração de inconstitucionalidade dos artigos 7º-A, 7º-B e
12, da Lei nº 11.154/91 do Município de São Paulo, pelo Órgão Especial deste
Tribunal de Justiça. 4) Impossibilidade da cobrança de multa e juros, pois o
fato gerador do ITBI só ocorre com a transferência efetiva da propriedade, com
o registro no Cartório de Registro de Imóveis - Precedentes do STj. 5)
Incidência de correção monetária, em virtude do transcurso de tempo entre transação
e o registro do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis - Inteligência do
artigo 97, §2º, do CTN — Sentença parcialmente reformada - Reexame necessário
parcialmente provido (Apelação / Remessa Necessária 1005681-71.2020.8.26.0053,
relator Eutálio Porto, 15ª Câmara de Direito Público, j. 14/04/2021)"
[2].
Nesse sentido, merece destaque o
enunciado do REsp 1.188.655/RS, de relatoria do ministro Luiz Fux:
"O fato gerador do ITBI
só se aperfeiçoa com o registro da transmissão do bem imóvel. Precedentes: AgRg
no Ag nº 448.245/DF, relator ministro Luiz Fux, DJ de 09/12/2002, REsp n.
253.364/DF, relator ministro Humberto Gomes de Barros, DJ de 16/04/2001 e RMS nº
10.650/DF, relator ministro Francisco Peçanha Martins, DJ de 04/09/2000"
(STJ, Primeira Turma, Julgado em 20/05/2010, DJe 08/06/2010).
E ainda:
"Tributário. ITBI. Fato
gerador. Ocorrência. Registro de transmissão do bem imóvel. 1) O fato gerador
do imposto de transmissão é a transferência da propriedade imobiliária, que
somente se opera mediante registro do negócio jurídico no ofício competente. 2)
Agravo Regimental não provido. (AgRg nos EDcl no AREsp 784.819/SP, relator
ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17/03/2016, DJe 01/06/2016)
Tributário. ITBI. Fato gerador. Ocorrência. Registro de transmissão do bem
imóvel. 1) O Tribunal a quo foi claro ao dispor que o fato gerador do ITBI é o
registro imobiliário da transmissão da propriedade do bem imóvel. A partir daí,
portanto, é que incide o tributo em comento. 2) O fato gerador do imposto de
transmissão (artigo 35, I, do CTN) é a transferência da propriedade
imobiliária, que somente se opera mediante registro do negócio jurídico no
ofício competente. 3) Recurso Especial não provido" (REsp 1504055/PB,
relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17/03/2015, DJe
06/04/2015).
Igualmente é o entendimento do C.
Supremo Tribunal Federal, "o fato gerador do ITBI somente ocorre com a transferência
efetiva da propriedade no Cartório de Registro de Imóveis". (ARE
934.091 AgR, DJ 05-12-2016. Vide tb ARE 765.899, DJ 11/02/2014).
Assim, considerado o
princípio/garantia da reserva de lei complementar em normas gerais sobre
matéria tributária, ainda que haja lei municipal a exigir o recolhimento do
tributo antes do registro do título translativo da propriedade perante o
competente Cartório de Registro de Imóveis, a incidência do ITBI só é
admissível no momento ensejador do fato gerador deste tributo, que só pode ser
aquele em que se realiza o registro da transmissão do bem imóvel, nos termos do
que prescreve a Constituição Federal (artigo 156, I) e o Código Tributário
Nacional (artigo 35, I). Interpretação diversa sobre o momento da transmissão
da propriedade e incidência do ITBI fere o artigo 124 do Código Civil, assim
como do artigo 110 do CTN.
Do ponto de vista da tutela dos
direitos dos contribuintes, qualquer demanda judicial neste sentido tem grandes
chances de êxito haja vista o respaldo dos Tribunais Superiores a este
entendimento. Ataca-se não só a incidência antecipada e indevida como qualquer
cobrança de juros e multa, igualmente improcedentes. A recomendada ação
judicial se coloca tanto de forma preventiva — evitando-se as ilegitimidades
referidas e o pagamento indevido — quanto repreensiva — para fins de buscar os
valores eventualmente pagos a maior.
Assim sendo, nos contratos de
gaveta cujo registro só se dê em momento posterior (independente do tempo entre
um fato e outro), não são devidos os encargos moratórios (multa e juros
moratórios) sobre o imposto no período entre a formalização do compromisso de
compra e venda até a data do registro do título no Cartório de Registro de
Imóveis.
_______
[1] §2º Não constitui majoração
de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização
do valor monetário da respectiva base de cálculo.
[2] Confira-se, no mesmo sentido:
Remessa Necessária Cível 1004121- 94.2020.8.26.0053, relator Rodrigues de
Aguiar, 15ª Câmara de Direito Público, j. 19/04/2021; Apelação / Remessa
Necessária 1060192-53.2019.8.26.0053, relator Raul De Felice, 15ª Câmara de
Direito Público, j. 19/04/2021; Apelação 1072032-60.2019.8.26.0053, relator
Beatriz Braga, 18ª Câmara de Direito Público, j. 16/04/2021; Apelação / Remessa
Necessária 1064954-78.2020.8.26.0053, relator Roberto Martins de Souza, 18ª
Câmara de Direito Público, j. 12/04/2021; Apelação 1055872-91.2018.8.26.0053,
relator Mônica Serrano, 14ª Câmara de Direito Público, j. 12/04/2021.
*Florence Haret Drago é sócia tributária do NHM
Advogados.
Fonte: ConJur