O texto foi publicado no site
Consultor Jurídico em 04/04/2022. O autor é é juiz de Direito no estado de
São Paulo, doutorando em Direito Civil pela FDUSP, mestre em Direito negocial
pela UEL-PR e especialista em Direito Constitucional Contemporâneo pelo
IDCC/Unibrasil.
Por Éverton Willian Pona
Em 6 de fevereiro deste ano, o jornal O Globo publicou reportagem relatando a
história de Gervásio Borges, de 63 anos, portador de esclerose lateral
amiotrófica (ELA). Ele decidiu se valer de uma diretiva antecipada de vontade
(especificamente, de um testamento vital) com a finalidade de registrar que,
alcançado o estágio final de sua enfermidade (progressiva, incurável e
debilitante), quando ele não puder mais expressar sua vontade, gostaria apenas
de receber a sedação para as dores e ser mandado para sua casa. Ele recusa ser
colocado em ventilação mecânica ou ser alimentado via sonda; não pretende ter
sua vida prolongada artificialmente.
De forma breve, pode-se
conceituar as diretivas antecipadas de vontade como um documento por meio do
qual os indivíduos dispõem antecipadamente sua vontade em relação aos
tratamentos, procedimentos e cuidados aos quais desejam ou não se submeter caso
chegue o momento no qual não possam se expressar de forma autônoma, podendo,
ainda, designar uma pessoa como responsável pela tomada dessas decisões [1].
Trata-se de um gênero do qual são as principais espécies o testamento vital
(living will) e a procuração para cuidados de saúde (durablepowerofattorney for
healthcare). Pela primeira, as decisões são tomadas diretamente pelo paciente
de forma prévia, mediante a especificação das condições de sua aplicação e os
tratamentos aos quais deseja ou não se submeter. Mediante a utilização da
segunda, atribui-se a terceiro a função de decisor, em substituição ao paciente.
Alguma confusão tem sido feita
com a terminologia. Não raro o termo “diretiva antecipada” é empregue como
sinônimo de “testamento vital”, e vice-versa, o que é incorreto [2], como
visto.
As advancedirectives surgiram nos
Estados Unidos, destacando-se o trabalho de LuisKutner, em 1969 (com a proposta
do living will) [3], na Califórnia, o estado no qual, em 1976, aprovou-se a
primeira lei reconhecendo a validade do documento (California’s Natural Death
Act). O debate foi impulsionado pela decisão da Suprema Corte de Nova Jersey no
caso de Karen Ann Quinlan. Igualmente tomou os holofotes e movimentou a
discussão sobre as diretivas antecipadas a decisão da Suprema Corte Americana
sobre Nancy Cruzan, anterior, porém no mesmo ano em que o Congresso dos Estados
Unidos aprovou o Patient Self-DeterminationAct (1990) [4], lei que reconheceu
as diretivas antecipadas com efeito vinculante em todo o território
norte-americano.
Além dos Estados Unidos, contam
com leis sobre as diretivas antecipadas: Finlândia, Hungria, Holanda, Bélgica,
França, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália, Porto Rico, Uruguai,
Argentina, Colômbia, Nova Zelândia, Austrália. E qual a situação legislativa
das diretivas antecipadas no Brasil?
No Brasil não há lei específica
sobre o instituto, cuja validade tem sido defendida com base na dignidade da
pessoa humana (artigo 1, III, CF), na liberdade e na autodeterminação dela
decorrentes (artigo 5, II, da CF), na privacidade (artigo 5º, X, da CF) e na
impossibilidade de submissão do paciente a tratamento sem seu consentimento
(artigo 15, do CC). O mais próximo de uma regulamentação efetiva trata-se da
Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina, e do reconhecimento da
juridicidade do documento por meio de enunciados interpretativos do Conselho da
Justiça Federal (V Jornada de Direito Civil — enunciado 527) e Conselho
Nacional de Justiça (I Jornada de Direito da Saúde — enunciado 37). Há,
contudo, propostas em andamento no Congresso Nacional.
Na Câmara dos Deputados, tem-se o
PL nº 5559/2016 (regulamenta os direitos do paciente) e o PL nº 352/2019
(dispõe sobre consentimento informado e instruções prévias de vontade sobre
tratamento de enfermidade em fase terminal de vida). A seu turno, no Senado
Federal se encontram o PLS nº 149/2018, diretamente relacionado às diretivas
antecipadas de vontade, e o PLS nº 493/2020, o qual pretende instituir o
estatuto do paciente, dedicando um capítulo às diretivas.
De todas as propostas, será
analisado o PLS nº 149/2018 por tratar especificamente do instituto. Uma emenda
substitutiva (com voto pela aprovação do projeto) foi apresentada pela senadora
Lídice da Mata na Comissão de Assuntos Sociais, onde o PLS aguarda a realização
de audiência pública, requerida pelo senador Lasier Martins (autor do projeto
de lei) e aprovada em 22/03/2022. A decisão da comissão será terminativa em
relação à matéria.
Para a análise da iniciativa
legislativa elegem-se quatro critérios: 1) se houve distinção entre diretivas
antecipadas de vontade e as principais modalidades; 2) as situações a que se
destinam; 3) os requisitos formais exigidos; 4) o conteúdo admitido.
Quanto ao critério 1, há
reconhecimento expresso da divisão em duas modalidades, testamento vital e
procuração para cuidados de saúde (artigo 2º, §1º, I e II), com o que acompanha
a tendência internacional.
Em relação ao critério 2, já no
início (artigo 1º, I, II e III) destaca que as diretivas se destinam a casos de
doença terminal, doenças crônicas e/ou neurodegenerativas em fase avançada ou
estado vegetativo persistente [5].
Por certo, quando LuisKutner
propôs a utilização do living will pensou a partir de situações de fim de vida
(afinal, estava analisando conjunturas relacionadas à eutanásia). Entretanto,
desde então, expandiu-se significativamente a abrangência das diretivas
antecipadas de vontade. Já se escreve sobre diretivas antecipadas
psiquiátricas, diretivas antecipadas para demência, planos de parto, ordens de
não reanimação [6], todos veículos de manifestação da vontade do paciente com
eficácia prospectiva para situações de futura incapacidade e que não envolvem,
necessariamente, fim de vida.
No cenário internacional, admitem
as diretivas antecipadas genericamente para situações em que o paciente não
possa expressar sua vontade, sem condicionar sua eficácia a situações de fim de
vida, por exemplo, Espanha [7], Inglaterra [8], Portugal [9] e Alemanha [10].
Assim, afirma-se que não acompanha o avanço doutrinário a forma como a
regulamentação brasileira foi proposta, limitando sobremaneira o espectro de
abrangência das diretivas antecipadas.
Em relação aos requisitos formais
(3), exige-se indivíduo civilmente capaz (artigo 1º, caput), dispensada a prova
médica acerca do discernimento (artigo 4º, §1º). Porém, veda-se a confecção por
pessoas portadoras de doenças psiquiátricas ou demência, mesmo que em fase
inicial (artigo 1º, §2º). O documento pode ostentar a forma pública ou privada
(ocasião em que deve contar com duas testemunhas — artigo 4º, caput). Menores
entre 16 e 18 anos podem confeccionar a diretiva desde que recebam autorização
judicial (artigo 1º, §1º). As condições nas quais as diretivas antecipadas são
eficazes (o estágio terminal, a presença de doença crônica irreversível ou o
estado vegetativo permanente) devem ser atestadas por dois médicos (artigo 1º).
Se a inclinação para a presunção
de discernimento da pessoa juridicamente capaz merece ser enaltecida por evitar
o questionamento a priori daquele que toma uma decisão que, aos olhos de
terceiros, pareceria contrária aos seus melhores interesses, em valorização da
condição de indivíduo autônomo e racional, a proibição de que pessoas
acometidas por enfermidades de natureza psiquiátrica ou demência se valham de
uma diretiva antecipada afigura-se discriminação injustificada sob a
perspectiva da igualdade constitucional.
Como assinalado, já se tem
pensado em diretivas antecipadas destinadas especificamente a tratamentos de
natureza psiquiátrica e relacionadas à demência. Doenças psiquiátricas podem
alternar intervalos de descompensação e de controle. Caso não tenha sido
formalmente declarado incapaz, o indivíduo, durante um momento de agudização da
doença, pode adotar atitudes que sejam prejudiciais a si mesmo ou terceiros e
que ele, mediante uma diretiva antecipada psiquiátrica, visa a evitar ao
concordar antecipadamente com a internação, por exemplo. A demência, a seu
turno, não compromete a capacidade cognitiva instantaneamente. Após o
diagnóstico da doença de Alzheimer (uma das causas mais comuns de demência), a
depender da fase em que a enfermidade foi descoberta, o paciente ainda conta
com a cognição suficiente e, portanto, pode tomar decisões acerca da própria
vida. Não se verificam razões para impedir que pessoas diagnosticadas na fase
inicial da doença estejam impedidas de exercer sua autonomia se ainda
ostentarem as condições de discernimento necessárias.
Se há preocupação em relação ao
grau de compreensão das consequências das decisões tomadas por pessoas
diagnosticadas com enfermidades psiquiátricas ou em estágio inicial de
demência, ao invés de despojá-las totalmente de sua autonomia para o exercício
de escolhas relativas à própria saúde, razoável seria flexibilizar a presunção
de discernimento do artigo 4º, §1º, para permitir que, mediante a prévia avaliação
médica de sua capacidade de tomar decisões, pudessem exercer a autonomia
prospectiva em relação aos cuidados de saúde.
Quanto ao conteúdo das diretivas
(4), a previsão do projeto de lei afasta-se do posicionamento rejeicionista e
admite recusa ou aceitação expressa de tratamentos. Contudo, de acordo com o
artigo 3º, o paciente não pode recusar cuidados paliativos [11], realizar
pedido de morte assistida, fazer constar disposições de caráter patrimonial ou
se manifestar acerca de autocuratela e tomada de decisão apoiada. Ainda, as
determinações não podem contrariar a lexartis médica (artigo 7, III e artigo 8,
II) [12] ou disposições expressas do ordenamento jurídico (artigo 8, III). É
possível, ainda, veicular a vontade relativa à doação de órgãos post mortem,
solicitar alta hospitalar e dispor acerca de ritos fúnebres (artigo 3, §2º, I,
II e III).
A reportagem que narrou a
história de Gervásio destacou também o recorde de registros de diretivas
antecipadas de vontade no Brasil: 780 durante o ano de 2021, o maior número
desde 2007. Como se vê, as diretivas antecipadas de vontade conformam aspecto
da realidade brasileira. A despeito da Resolução CFM nº 1995/2012 tratar do
assunto, como advertiu Otávio Luiz Rodrigues Jr., ela não resolve o problema do
fundamento jurídico de base legal para o instituto, relegando à esfera
normativa de uma corporação profissional a regulamentação de instituto que
“interfere no sentido e no alcance da própria vida de um indivíduo”, enquanto
diversas outras formas de contratação, em geral, exclusivamente patrimonial,
são regulamentadas pelo ordenamento [13].
Nesse contexto, a necessidade de
segurança jurídica para o exercício de posições subjetivas existenciais como a
aceitação ou recusa de tratamentos médicos para o momento de futura
incapacidade demanda a atenção do legislador e a positivação do instituto.
Alvissareiras são as iniciativas existentes. Há, todavia, espaço para
aperfeiçoamento, ampliando-se o debate para entregar aos brasileiros uma lei
consentânea com as discussões atuais e constitucionalmente inclusiva. De tal
modo, outros tantos brasileiros poderão, como Gervásio, seguramente crer que
serão ouvidos mesmo quando sua voz estiver fisicamente silenciada.
* Esta coluna é produzida pelos
membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP,
Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG,
UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
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[1] PONA, Éverton Willian.
Testamento vital e autonomia privada: fundamentos das diretivas antecipadas de
vontade. Curitiba: Juruá, 2015, p. 36-36. O tema foi tratado na Coluna Direito
Comparado, por Otávio Luiz Rodrigues Jr., em duas ocasiões no ano de 2013, as
quais podem ser acessadas aqui e aqui.
[2] Luciana Dadalto vem
sistematicamente advertindo para essa confusão terminológica e mantém a
advertência na mais recente edição de seu livro: DADALTO, Luciana. Testamento
vital. 6.ed. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 18-19.
[3] KUTNER, Luis. Dueprocessofeuthanasia:
the living will, a proposal. Indiana Law Journal, v. 44, iss. 4, article2,p.
539-554, 1969.
[4] Uma análise detalhada dos
argumentos empregues nas decisões dos casos de Karen Ann Quinlan e Nancy Cruzan
pode ser encontrada em: AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do; PONA,
Éverton Willian. O movimento das peças no xadrez com a morte em tribunais
estadunidenses: contribuições para o debate sobre diretivas antecipadas de
vontade. In: DINIZ, Maria Helena (Coord.). Direito em debate. São Paulo: Almedina,
2020, v. 1, p. 19-62.
[5] Diferente previsão se observa
no PLS 493/2020 que, aparentemente, admite a eficácia em outras situações. Isso
porque separa em capítulos distintos as diretivas antecipadas de vontade
(capítulo III – arts. 16 a 21) e os direitos do paciente em estágio terminal de
vida (capítulo IV – arts. 22 a 25). Ao tempo em que artigo 16 garante de forma
genérica o direito de manifestar antecipadamente a vontade, o artigo 18 destaca
que o paciente com enfermidade irreversível e progressiva tem direito a ser
informado sobre a possibilidade de confeccionar uma diretiva antecipada e o
artigo 19 limita, em casos de estágio terminal de vida, as possibilidades de
recusa. Ainda, o artigo 22 reafirma a possibilidade de o paciente em estágio
terminal aceitar, recusar ou interromper tratamentos. Ou seja, parece haver
distinção entre uma situação mais abrangente à qual se destinam as diretivas
antecipadas (impossibilidade de expressão da vontade pelo paciente), com a
ressalva de especificidades para a situação de terminalidade da vida.
[6] DADALTO, Luciana. Testamento
vital…cit., p. 20-24.
[7] Artigo 11, da Ley General de
Sanidad (Ley n. 41/2002).
[8] Mental CapacityActof 2005.
[9] Artigo 2º, I, da Lei nº
25/2012.
[10] BGB, §1901a.
[11] Como também não permite o
artigo 3, da Ley n. 160/2001, de Porto Rico ou o artigo 1, 4, da Ley n.
18.473/2009, do Uruguai.
[12] No mesmo sentido o artigo
11, 3, da Ley General de Sanidad da Espanha (Ley n. 41/2002) e artigo 5º. da
lei 25/2012, de Portugal.
[13] RODRIGUES JR., Otávio Luiz.
Diretivas antecipadas de vontade: questões jurídicas sobre seu conceito,
objeto, fundamento e formalização. In: SILVEIRA, Renato de Mello; GOMES,
Mariângela Gama de Magalhães (Orgs.). Estudos em homenagem a IvetteSenise Ferreira.
São Paulo: LiberArs, 2015, p. 386.
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Éverton Willian Pona é juiz de
Direito no estado de São Paulo, doutorando em Direito Civil pela FDUSP, mestre
em Direito negocial pela UEL-PR e especialista em Direito Constitucional
Contemporâneo pelo IDCC/Unibrasil.
Fonte: IRTDPJ-BR