Os
cartórios brasileiros são responsáveis por quase 70% das comunicações de
operações suspeitas feitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o
Coaf. Nos últimos dois anos, tabeliães, notários e registradores de todo o país
enviaram ao órgão de inteligência financeira mais de 2,5 milhões de registros
que, na visão dos cartorários, poderiam indicar atividade ilícita — mais
especificamente, lavagem de dinheiro ou financiamento do crime organizado.
Para se ter
uma ideia do que significa esse volume de comunicações, no mesmo período, os
bancos — por onde, ao menos em tese, passa todo o dinheiro movimentado em
território nacional — notificaram o Coaf 690 mil vezes. Ou seja, cartórios
enviaram quase quatro vezes mais notificações de operações suspeitas do que as
instituições bancárias. Os números podem ser acessados no site do Coaf.
Há duas
espécies de comunicação encaminhadas ao Coaf. A mais comum é a Comunicação de
Operação em Espécie (COE), que é uma notificação enviada automaticamente pelos
setores obrigados por lei a mandar informações ao órgão sempre que um cliente
faz transação em dinheiro vivo acima R$ 50 mil. A outra é a Comunicação de
Operação Suspeita (COS), encaminhada quando os chamados setores obrigados
percebem em negociações de seus clientes indícios de lavagem de dinheiro,
financiamento de terrorismo ou de crime organizado e outras atividades
ilícitas.
As pessoas
e os setores obrigados a informar o Coaf sobre movimentações financeiras são
formados por corretoras de valores, cooperativas financeiras, bancos,
joalherias, marchands, seguradoras, prestadores de serviço de assessoria e
consultoria, loterias, atletas, artistas, entre outros. E, desde 2020, os
cartórios se tornaram fonte de informações do órgão por força do Provimento
88/2019 do Conselho Nacional de Justiça, que entrou em vigor em fevereiro de
2020.
Desde
então, o volume de comunicações de operações suspeitas explodiu. Em 2018, o
Coaf recebeu 428 mil comunicações de operações suspeitas. Em 2019, foram 346
mil. Já em 2020, com a vigência da regra do CNJ que se impôs aos cartórios, o
número de notificações saltou para 1,4 milhão. E, em 2021, chegou a 2,3
milhões. Do total do ano passado, 1,6 milhão são comunicações feitas pelos
cartórios.
Os números
levantam algumas questões. Criminosos têm predileção por operar com cartórios
quando lavam dinheiro ou os cartórios estão enviando informações em excesso
para o Coaf? Quais os motivos desse acréscimo monumental no volume de
informações enviadas ao órgão? Há uma análise criteriosa para o envio dessas
informações? O Coaf consegue lidar com esse volume de informação? Não há
respostas simples para as perguntas, como se percebe na análise que
especialistas ouvidos pelo ConJur fazem do fenômeno.
Há sinais
inequívocos no sentido de que o provimento do CNJ fez com que os cartórios, com
receio de serem punidos por alguma falha nas comunicações, adotassem a seguinte
regra: "Na dúvida, comunique-se!". Esse procedimento, contudo, não é
o que se espera dos entes obrigados a prestar informação. Em seus relatórios de
atividades, o Coaf informa que todas as comunicações "estão fundamentadas
em uma avaliação do risco das operações e partes envolvidas, de forma a dar
objetividade e impessoalidade à gestão e priorização das análises".
De forma
bastante resumida, quando uma comunicação chega ao Coaf, ela é armazenada em
uma base de dados onde é submetida a uma análise sistêmica eletrônica
— basicamente um cruzamento daquela informação com o vasto leque de
informações do banco de dados do órgão de inteligência. Nesta fase, é feito o
que se chama internamente de diferimento automático. Se a operação suspeita não
apresenta detalhamento mínimo da atipicidade identificada, a comunicação é
diferida. Ou seja, permanece na base de dados para consulta, mas não segue
para as etapas seguintes do processo.
A segunda
etapa é baseada em um modelo estatístico de classificação que seleciona
comunicações recebidas para análise individualizada, baseando-se na
probabilidade de a comunicação recebida conter elementos de risco. Só depois
disso é que a comunicação pode receber a análise de servidores do órgão e,
então, caso haja de fato inconsistências na operação, é elaborado o Relatório
de Inteligência Financeira (RIF).
O
crescimento do número de comunicações suspeitas se fez sentir nessas etapas. Em
2019, quando os cartórios ainda não eram obrigados a enviar informações ao
Coaf, foram emitidos 6,2 mil RIFs. Em 2020, já com as comunicações dos
cartórios, o número de RIFs foi de 11,6 mil. E, em 2021, foram emitidos 12,5
mil RIFs. A dúvida de especialistas é se não acabam sendo colocados sob
suspeita operações que, melhor analisadas, revelariam apenas inconsistências de
informação.
A prática
de comunicar diante de qualquer dúvida, que em um primeiro momento poderia parecer
salutar, revela alguns problemas. Segundo o advogado constitucionalista e
professor André Karam Trindade, "se não há a
avaliação adequada de cada situação concreta à luz de critérios objetivos, o
cidadão que for ao cartório fazer um negócio qualquer pode se tornar,
automaticamente, suspeito da prática de lavagem de dinheiro".
Suspeita
que, para ele, nasce sem a adequada base legal, principalmente quando se
considera o fato de que o Coaf pode compartilhar as informações que são
fornecidas com os órgãos de investigação e persecução criminal, conforme já
decidiu o Supremo Tribunal Federal.
De acordo
com Trindade, a questão crucial a ser enfrentada é o fato de um leque de
negócios tornar-se suspeito a despeito de qualquer verificação concreta, o que
viola direitos fundamentais assegurados constitucionalmente. O professor
considera salutar a obrigação de os cartórios informarem operações suspeitas ao
CNJ, mas não de forma indiscriminada. "O combate à criminalidade não pode
ser encampado com o sacrifício de direitos e garantias fundamentais dos
cidadãos, especialmente quando existem maneiras de atingir os mesmos resultados
sem necessariamente desprotegê-los."
Tempo
de prática
O
criminalista Pierpaolo Cruz Bottini, reconhecido
estudioso do tema lavagem de
dinheiro, enxerga dois problemas,
complementares, que causam esse enorme volume de comunicações. Primeiro, uma
regulamentação excessivamente aberta. Em segundo lugar, a falta de experiência
do setor obrigado. "A exigência da comunicação de operações suspeitas
pelos cartórios acaba de completar dois anos. Do ponto de vista da experiência
institucional, é muito pouco tempo. A maturação da prática, somada à troca de
ideias entre tabeliães e o Coaf, certamente melhorará os filtros e a tendência
é a redução desse volume", afirma.
Bottini
rememora que um fenômeno semelhante aconteceu com o setor bancário, quando as
instituições passaram a ser obrigadas a informar operações suspeitas ou
atípicas ao Coaf: "Houve excesso, o próprio Coaf reclamou, nasceu um
diálogo institucional saudável, os bancos aperfeiçoaram seus sistemas de
avaliação e, hoje, o quadro é muito melhor. No começo, é natural que haja algum
excesso porque, na dúvida, se faz a comunicação. E é assim porque uma
comunicação mal feita ou uma omissão pode implicar em imputação de lavagem de
dinheiro."
Este, por
óbvio, não é o melhor quadro. O ideal é que cartórios não tivessem dúvidas
sobre o que precisam informar. Mas o excesso, avalia Pierpaolo Bottini, decorre
também de uma jurisprudência que vem ampliando os critérios de participação e
autoria em lavagem de dinheiro. "Hoje se enquadra como dolo eventual, por
exemplo, o fato de não se tomar as cautelas devidas conhecendo a possibilidade
de contribuir com a lavagem de dinheiro. Diante de tal precedente, é natural
que, na dúvida, a pessoa comunique o Coaf." Mas, claro, essa não é a
melhor ação porque, ao fim, o volume pode acabar por inviabilizar o trabalho de
fiscalização do órgão estatal.
Bottini
lembra de uma frase que ouviu de um ex-presidente do Coaf que se preocupava em
diminuir o volume de comunicações e aprimorar a qualidade delas: "A melhor
forma de esconder um ato de lavagem de dinheiro é colocá-lo no meio de milhares
de outras comunicações." Karam Trindade faz coro à ideia: "O excesso
de comunicações salta aos olhos e parece prejudicar a todos. Essa sim é uma
questão que merece especial atenção por parte dos órgãos governamentais, especialmente
do CNJ, e, sobretudo, da sociedade civil. Afinal, quanto mais informação, menos
informação. Eis o paradoxo, porque informação demais é informação de
menos."
O
criminalista Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues concorda
que o excesso pode prejudicar a análise operacional das informações, mas
entende a precaução dos cartórios: "O Provimento 88 estabeleceu uma série
de condutas aos notários e registradores, sendo que eles podem vir a
ser responsabilizados administrativamente — inclusive com a perda da
serventia — no caso de descumprimento dessas condutas. Assim, como as normas do
provimento são de interpretação aberta, havendo a menor dúvida, é melhor que
haja a comunicação ao Coaf."
A
advogada Cecilia Mello, também criminalista e juíza
aposentada do TRF-3, onde atuou por 14 anos, faz avaliação semelhante à dos
colegas. "O Provimento 88 do CNJ é de uma amplitude tal que realmente fica
muito difícil para os notários e registradores identificarem com maior precisão
as operações que podem ser consideradas suspeitas. Essa identificação
demandaria um conhecimento amplo por parte desses profissionais sobre operações
relacionadas a lavagem de ativos ou eventualmente ligadas ao terrorismo, o que,
até recentemente, não fez parte de suas rotinas."
De acordo com
ela, as instituições financeiras, que há tempos já se deparam com esse
contexto, têm muito maior facilidade de identificação de operações suspeitas e,
consequentemente, de solicitação de informações daqueles que, em tese, estão
envolvidos. "Na mesma linha, têm maior facilidade para identificar as
operações que precisam — e as que não precisam — ser informadas ao Coaf",
afirma.
Há, ainda,
outro ponto levantado pela advogada: "O rol de hipóteses de operações que
podem ser suspeitas e que são atribuídas aos notários e registradores talvez
seja muito mais amplo do que aquelas que são atribuídas às instituições
financeiras. Assim, por cautela, e na dúvida, os cartórios certamente passarão
as informações ao Coaf." Cecília Mello diz não crer que o Provimento 88
possa ser modificado de maneira a facilitar essa verificação. "O cerne da
questão está na amplitude das operações que podem passar pelos cartórios que,
talvez, precisem passar a ter um profissional extremamente especializado para
não enviarem tantas informações ao Coaf."
Programas
de integridade
A falta de
profissionais especializados para analisar informações sensíveis que realmente
devam ser enviadas ao Coaf é, para o advogado especialista em compliance Alfredo
Copetti, um dos pontos centrais do debate.
A norma do
CNJ impõe aos cartórios a análise qualitativa dos sujeitos e valores
envolvidos, da forma, finalidade e complexidade dos negócios e da preexistência
de fundamentos jurídicos e econômicos que embasem as operações. "Isso
significa reconhecer a necessidade de investimento em programas de compliance
que proporcionem o desenvolvimento de ambiente de gestão, mapeamento de dados e
análise de risco, a estruturação de uma política e seus procedimentos,
elaboração de instrumentos legais, treinamento e qualificação dos colaboradores
e monitoramento constante do programa", afirma Copetti.
Segundo o
advogado, a Lei 12.683/12, que reformou trechos da Lei de Lavagem (Lei
9.613/1998), exige dos setores obrigados a adoção de programas de integridade.
A imposição consta do inciso III, artigo 10, da norma: "Art. 10. As
pessoas referidas no art. 9º: (...) III – deverão adotar políticas,
procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de
operações, que lhes permitam atender ao disposto neste artigo e no art. 11, na
forma disciplinada pelos órgãos competentes."
Portanto, a
regra de "na dúvida, comunique-se", é justificável apenas em parte.
Se o cartório deixa de informar uma operação que deveria ter informado, incorre
em ilícito administrativo e o ato de omissão ainda pode se tornar um ato de
lavagem de dinheiro. É o que diz a lei. Daí se entende a regra de comunicar ao
menor resquício de dúvida. Mas, para o professor Copetti, os problemas e
dúvidas seriam minimizados com a instituição dos controles internos previstos
na Lei de Lavagem que nada mais são do que programas de compliance.
"Em
alguns setores, o compliance obrigatório ainda não foi bem regulamentado. Um
exemplo de atividade bem regulamentada nesse quesito é a atividade bancária,
que poderia inspirar os cartórios. O provimento do CNJ estabelece que os
cartórios têm de implementar uma análise de riscos. Mas o que os números
indicam é que pode haver comunicações indiscriminadas, o que, ao final, joga
contra a eficácia do provimento", opina Alfredo Copetti. Para ele, mais do
que fiscalizar o envio das comunicações, as corregedorias deveriam cobrar a
implementação dos programas de integridade.
Programas
deste gênero seriam de importante implementação até para que haja um tratamento
adequado dos dados dos cidadãos que utilizam serviços cartoriais. Advogada
especialista no estudo da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Estela
Aranha considera que, por conta do provimento do CNJ, hoje os
cartórios exigem dos clientes um volume muito maior de informações do que, de
fato, seria necessário para as transações. Os próprios cartórios entendem que
recolhem mais do que o necessário.
Ela
ressalta que é preciso levar em conta as diferentes características regionais
do Brasil, o que não é possível fazer por meio de um provimento geral. Daí a
necessidade de controles. "Uma transação pode ser considerada atípica no
interior do país e ser absolutamente corriqueira nos grandes centros
financeiros", avalia. Quando não há essa diferenciação, o envio de dados sem
uma análise mais atenta invade a esfera da privacidade da pessoa, infringindo
direito fundamental, com o uso de critérios absolutamente subjetivos.
De acordo
com o advogado Paulo Lilla, especialista em proteção de
dados e propriedade intelectual, a LGPD não se aplica ao tratamento de dados
pessoais em atividades de investigação e repressão de infrações penais. Por
isso, se os compartilhamentos com o Coaf forem adequados ao provimento do CNJ,
em tese não haveria implicações quanto à LGPD.
"Contudo,
até a eventual regulamentação do tema no âmbito penal, é recomendável que os
critérios adotados pelos cartórios na identificação das movimentações que serão
reportadas incluam a observância dos princípios previstos na lei geral, como os
princípios da finalidade, adequação e necessidade, pois os tratamentos que
extrapolarem as atividades de investigação poderão atrair a aplicação da
LGPD", explica Lilla.
O
tabelião Marcelo Lima Filho, titular de um cartório de
notas em Manaus, avalia que o volume expressivo de comunicações é como uma ação
defensiva dos delegatários, justamente por conta das regras de
interpretação muito subjetivas e, de outro lado, de outras que criam
obrigações bastante objetivas. Diante do receio de serem responsabilizados
pelas corregedorias de Justiça, ou até criminalmente, os titulares preferem
pecar pelo excesso do que pela omissão. Ele também acredita que, com algum
tempo de maturação, os cartórios saberão lidar melhor com as comunicações e
implantarão sistemas mais efetivos de compliance e análise de riscos.
Fernanda
Castro, diretora-executiva da
Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR), defende o
posicionamento dos cartórios com base em situações práticas. A título de
exemplo, ela fez referência à obrigação descrita no inciso I do artigo 28 do
provimento do CNJ. O dispositivo determina que os cartórios são obrigados a
comunicar o "registro de quaisquer documentos que se refiram a
transferências de bens imóveis de qualquer valor, de transferências de cotas ou
participações societárias, de transferências de bens móveis de valor superior a
R$ 30.000,00".
Na prática,
qualquer alteração no contrato social de uma empresa em que haja transferência
de cotas de mais de R$ 30 mil, por mais legítima que seja, acaba reportada ao
Coaf. Mas não por uma decisão dos cartórios, e sim devido a uma ordem
expressa de regra imposta pelo CNJ.
"Somos
obrigados a cumprir o provimento, sob pena de responsabilização administrativa,
cível e penal. A melhoria do sistema depende mais de uma mudança no provimento
do que de adaptações dos cartórios", afirma Fernanda Castro. Ela conta que
as associações participaram das discussões da construção da atual regra no CNJ,
e que muitos dos critérios fixados ampliaram a base de sugestões feitas pelos
tabeliães e notários. Postas as regras, coube a eles cumpri-las.
A diretora
da Anoreg acredita que talvez tenha chegado a hora de mais uma rodada de
conversas para que o provimento seja revisto. "A partir destes dois anos
de experiência prática, poderíamos sentar para ouvir o Coaf, os cartórios, as
corregedorias e reavaliar as regras para melhorar a efetividade das
comunicações a fim de torná-las mais assertivas. Temos todo o interesse em
contribuir para o combate à lavagem de dinheiro de maneira efetiva. Mas, hoje,
o que fazemos nada mais é do que cumprir à risca as regras postas",
sustenta.
A
criminalista Ludmila Leite entende que para que o
sistema nacional de prevenção à lavagem de dinheiro funcione de maneira coesa e
efetiva, é necessário que todas as entidades envolvidas atuem de modo adequado
e de acordo com a legislação que lhe é aplicável. "Apesar de não trazer
maiores consequências do ponto de vista sancionador — considerando que a
comunicação apenas permite o início do ato fiscalizador, fornecendo maior
transparência para uma melhor apuração das movimentações analisadas —, esse
envio sem maiores critérios pode causar problemas no fluxo de trabalho do
Coaf", afirma.
Dever
x eficiência
O professor Alaor Leite, docente da Universidade
Humboldt, em Berlim, anota que o alarmante volume de informações enviadas por
cartórios a órgãos de inteligência financeira não é uma exclusividade
brasileira. Ele toma como exemplo a Alemanha, país em que reside e leciona,
onde os cartórios passaram a ser obrigados a prestar informações por causa de
uma lei aprovada após a Quinta Diretiva da União Europeia contra lavagem de
dinheiro, que ampliou as hipóteses de cooperação e intercâmbio de informações.
Comparados
com os números brasileiros, os alemães são mínimos. Mas, para a realidade
daquele país, é muita informação: no primeiro ano de vigência da regra,
cartórios comunicaram 1,6 mil operações suspeitas. Ficaram atrás apenas do
sistema financeiro, porém não muito atrás. O volume ligou um alerta para as
autoridades alemãs. "O número foi lido como expressivo e preocupante
porque se a ideia é prevenir lavagem a partir da integração de um setor que tem
uma base informacional muito vasta, como o dos cartórios, o que se espera é uma
qualidade informacional capaz de gerar uma persecução penal que, na prática,
culmine com a recuperação de ativos", explica o professor.
Ou seja,
quando a informação é enviada por meio de uma postura quase defensiva para
evitar eventuais reprimendas legais, e não colaborativa de fato, essa
informação acaba por abarrotar os órgãos de fiscalização e tem pouca
eficiência. "Ao final, o que é pensado como uma ferramenta de auxílio no
combate à lavagem pode, potencialmente, se tornar um problema porque
não será possível processar as comunicações", analisa Alaor Leite.
A
preocupação do professor na Alemanha encontra ressonância na avaliação dos já
citados advogados André Karam Trindade e Alfredo Copetti. Para os dois, o
enfrentamento da corrupção e da lavagem de dinheiro depende de informações
qualificadas, o que implica a fiscalização por parte das corregedorias de
justiça. "Sem isso, não há inteligência financeira", diz Trindade.
"Da mesma forma, a amplitude dos critérios elencados no provimento do CNJ
para fins de verificação das operações suspeitas configura um grande obstáculo
à sua efetividade, na contramão da republicana noção de accountability",
reforça Copetti.
Para Alaor
Leite, a inclusão dos cartórios no rol de setores obrigados até demorou a ser
feita. Era algo natural, graças à capilaridade de sua existência em um país de
dimensões continentais como o Brasil e à sua imensa base informacional.
"Os cartórios têm uma fotografia biográfica sobre movimentações e perfis
das pessoas que interessa muito aos órgãos de fiscalização e de persecução penal",
afirma.
Mas,
diferentemente da Alemanha, onde a regulação foi feita por lei, no Brasil a
obrigação veio por meio de um provimento de órgão administrativo. "Além de
ter uma qualidade legislativa menos densa, o provimento ingressa em matéria com
reserva de lei ao fixar hipóteses de responsabilização penal e de proteção de
dados", diz Leite.
O fato de o
provimento avançar em tema do qual não teria competência para dispor é
observada também pelo advogado Rafael Valim, especialista
em Direito Administrativo. Valim toma como exemplo comparativo a carta circular
do Banco Central que divulga a relação de operações e situações que podem
configurar indícios de ocorrência dos crimes de lavagem ou ocultação de bens,
direitos e valores passíveis de comunicação ao Coaf.
Na carta,
não há definição de montantes objetivos como, por exemplo, operações a partir
de determinados valores, para a informação dos bancos ao Coaf. Há regras
abertas, que permitem que os bancos informem tudo o que há de anormal, como
"transferência de recursos em espécie, que apresentem atipicidade em
relação à atividade econômica do cliente ou incompatibilidade com a sua
capacidade financeira" ou "fragmentação de depósitos ou outro
instrumento de transferência de recurso em espécie, inclusive boleto de pagamento,
de forma a dissimular o valor total da movimentação", entre outros
exemplos.
Já no
provimento do CNJ, aponta o administrativista, há alguns critérios objetivos,
que fogem da possível análise dos cartórios. Como, por exemplo, para os
tabeliães de protesto, que são obrigados a comunicar "qualquer operação
que envolva o pagamento ou recebimento de valor em espécie, igual ou superior a
R$ 30 mil ou equivalente em outra moeda, desde que perante o tabelião".
Como essa, há várias outras.
Daí,
conclui Valim: "O excesso de informações ao Coaf, de operações
absolutamente normais e que não deveriam ser informadas, deve-se à ordem da
Corregedoria do CNJ. O CNJ, por sua vez, não ostenta competência para inovar
originariamente a ordem jurídica, ou seja, criar direito e obrigações. É um
órgão de controle interno da magistratura. Disso resulta que um provimento de
um único conselheiro do CNJ, o Corregedor, não poderia criar norma geral e
abstrata impositiva aos cartórios e sobre as pessoas que fazem negócios no Brasil.
Ademais, não está na esfera de atribuições do CNJ criar regras de informação
sobre lavagem de dinheiro."
De acordo
com o advogado, "seria mais eficiente que o próprio Coaf emitisse
orientação sobre o tema, sob pena de ter seu trabalho dificultado por
informações desnecessárias".
Fonte:
Conjur