Todo processo de
aperfeiçoamento institucional, no regime democrático, é válido. Melhor ainda
quando ele ocorre de forma a ouvir todos os interessados em melhorar o serviço
público.
No último dia 4 de abril, Joel Pinheiro da Fonseca
publicou um artigo em sua coluna na Folha de S. Paulo intitulado "Você
gosta de ir ao cartório?", no qual, em síntese, aponta existir um
"lobby de cartórios e tabelionatos (sic)" contrário à conversão
da MP 1.085/21 em Lei. Segundo o autor, o "lobby" se opõe à
"digitalização dos cartórios", medida que afetaria privilégios
burocráticos de cartórios prósperos em desfavor de maior agilidade e menor custo
agregado às operações imobiliárias. Mas não mostra uma pesquisa sequer que
confirme a sua afirmação.
É evidente que o debate público pode comportar as
mais diversas posições sobre as atribuições conferidas aos cartórios -
alcançando, inclusive, uma reflexão sobre sua própria existência - e o lugar
que eles ocupam na ordem republicana. No entanto, é indispensável que esse
mesmo debate ocorra segundo uma argumentação amparada em evidências e na
racionalidade.
Há algumas inconsistências na fala do articulista
que precisam ser abordadas. A primeira é a forma como foi apresentada a
pesquisa "Custo da Burocracia no Imóvel", da Câmara Brasileira da
Indústria da Construção. O encarecimento de 12% do preço dos imóveis não é de
responsabilidade exclusiva - e nem principal - dos registros imobiliários.
Aliás, de acordo com a mesma pesquisa, seu peso é menor em comparação aos
gargalos regulatórios, de licenciamento e até mesmo de financiamento e de
mão-de-obra.
Além disso, o texto induz a erro o leitor quando
afirma que a renda média de um titular de cartório ultrapassa R$ 100 mil
mensais, sem esclarecer se o valor é bruto ou líquido - neste caso, é preciso
contabilizar os descontos relacionados às receitas do Estado (17,14%), da
Fazenda (11,73%), do MP (2,9%), do Fundo Especial de Despesa do Tribunal de
Justiça (4,14%), da compensação dos atos gratuitos do Registro Civil das
Pessoas Naturais e complementação de receita mínima das serventias deficitárias
(3,18%) e do repasse às Santas Casas (1%). E, por evidente, todos os custos
operacionais, de infraestrutura física e de TI e de recursos humanos.
Não é possível afiançar nem mesmo a resposta
desejada à pergunta que serve de título ao texto de opinião. De acordo com
pesquisa do Datafolha de 2015, 77% dos usuários de cartórios de
Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte
consideraram o serviço prestado ótimo ou bom. Lembre-se, ainda, o papel
essencial que o registro civil assumiu durante a pandemia da COVID-19.
Instituição independente e insuscetível de pressões políticas, foi responsável
por garantir à população brasileira a publicidade em relação ao número de
mortos pela doença.
A digitalização nos cartórios já é uma realidade há
muito tempo, muito antes do movimento de incorporação das TICs pelo Poder
Judiciário. Inclusive, em diversos estados, a modernização e adoção da
tecnologia na agilização de processos judiciais contaram com o apoio e o
patrocínio dos cartórios. Tampouco há contrariedade à celeridade: não é nova,
por exemplo, a luta dos cartórios para atuar no campo da autocomposição dos
conflitos, por meio da mediação.
O e-Notariado, regulamentado pelo provimento CNJ
100/20, que estabelece normas gerais para a prática de atos notariais
eletrônicos, já contempla, em longo rol contido no art. 10, atos como a matrícula
notarial eletrônica, o fornecimento de certificados digitais e assinaturas
eletrônicas notarizadas, a realização de videoconferências notariais, os
sistemas de identificação e validação biométrica, o reconhecimento de firmas,
entre outros, todos com validade nacional e fé pública nos termos da lei. Mais
recentemente, o provimento CNJ 103/20 estendeu o uso da tecnologia também para
a autorização de viagem nacional e internacional de crianças e adolescentes,
que pode ser feita eletronicamente. Mencione-se, por fim, o Operador Nacional
do Registro, no âmbito do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR/SREI),
operacional desde 15.02.22, e que garante acesso remoto, a um clique, aos
cidadãos, a qualquer oficial registro de imóveis do país.
Todo processo de aperfeiçoamento institucional, no
regime democrático, é válido. Melhor ainda quando ele ocorre de forma a ouvir
todos os interessados em melhorar o serviço público. Por isso, a proposta do
Poder Executivo de encaminhar essa discussão por meio de medida provisória é um
verdadeiro açodamento do debate público, que é mais amplo no processo
legislativo regular. É preciso definir com clareza as premissas desse
debate, e afirmar que os cartórios são contra a digitalização,
seguramente, não representa fielmente a verdade.
Wilson Levy: Advogado.
Doutor em Direito pela PUC-SP com estágio de pós-doutoramento pela Mackenzie.
Foi assistente jurídico na Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo
(2012-13), diretor da Presidência do TJSP (2014-15) e chefe de gabinete na
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (2017-18). É diretor do programa
de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE.
Fonte: Migalhas