Não restam dúvidas de que
a sociedade pós-moderna convive com uma série de (r)evoluções tecnológicas, uma
vez que, após a II Guerra, se teve uma inquestionável revolução digital, que
repercute notadamente na informação e na comunicação1. Assim, Aldous Huxley, em
seu "O admirável mundo novo"2, aponta tanto os desafios bem como o
deslumbramento com o qual o homem contemporâneo se depara, pelas possibilidades
tecnológicas, como também a insegurança trazida pelos desafios de atuar em uma
realidade na qual se exige constante (re)adaptação.
O avanço tecnológico
ocorre, nos dias de hoje, a uma velocidade sem precedentes e os seus
desdobramentos se fazem sentir em todos os aspectos da vida humana. Tais
inovações acabam por gerar novos desafios a todos os setores e segmentos da
sociedade, incluindo-se, aí, sem qualquer dúvida, o Direito que, nessa corrida
tecnológica, tenta regulamentar essa nova realidade. A tecnologia blockchain surge
nesse cenário como mais um avanço dessa revolução tecnológica, representando no
mundo digital, desde a globalização, a maior oportunidade a permitir o avanço
da sociedade em suas mais diversas operações, compreendendo parte fundamental
da denominada "Indústria 4.0" ou "Quarta Revolução
Industrial"3.
Dentro da ideia exposta,
traz-se o seguinte questionamento: caberia a utilização da tecnologia
blockchain junto ao processo judicial? Cabe salientar que o blockchain, ao
traduzir para a língua portuguesa o nome dado a essa tecnologia block + chain,
é possível formar uma imagem mental de como ela funciona: são blocos de
registros das informações ligados em rede, ou seja, uma "cadeia de
blocos" ou "encadeamento de blocos", o que proporciona uma
referência inicial de como atua essa tecnologia. Ela permite que a
"transmissão de qualquer tipo de informação ocorra por meio de
"cripto-chaves", que quando efetivada forma um bloco"4,
funcionando como um livro contábil de registros, de forma pública,
compartilhada e universal, de modo a criar consenso e confiança entre todas as
pessoas e sobre todas as informações, no qual as transações de cada registro
ficam armazenadas5.
Blockchain consiste,
pois, em uma tecnologia disruptiva na qual as informações são consolidadas e
encadeadas em blocos virtuais, podendo-se fazer analogia com um livro, no qual
cada página contém um texto (o conteúdo), em cujo topo se insere uma informação
sobre o referido conteúdo (um título ou numeração)[6]. O blockchain é,
portanto, uma forma de guardar informações em bancos de dados.
Embora a criptomoeda de
bitcoin tenha colocado o holofote sobre a tecnologia blockchain, ela abre
portas para infinitas possibilidades. Pesquisas desenvolvidas recentemente
apontam inúmeros setores de aplicação do blockchain, segmentos esses entre os
quais podemos citar: setor financeiro, gerenciamento de dados, saúde, redes
sociais, cibersegurança, transporte e turismo, autoria e propaganda, entre
outros, alguns deles de interesse dos profissionais do direito7.
Para exemplificar como a
tecnologia blockchain pode ser utilizada junto ao Direito, podem ser citados,
por exemplo, os casos de registro e transferência de propriedade, celebração e
execução de contratos eletrônicos, que poderão ser provados com a segurança
jurídica necessária, excepcionados os casos que se exige instrumento público ou
outra formalidade específica, a partir das anotações do "livro contábil
aberto a todos"8.
Mais clara, ainda, é a
hipótese em que um print screen é tirado de uma de uma página de uma rede
social aberta em um smartphone para comprovar um ato ilícito perpetrado. Se
impugnado o print screen, a parte que o utilizou no processo terá que fornecer
mecanismos para que ele possa ser autenticado, a teor da disposição do art.
422, § 1º, do CPC/2015. Caso a publicação original tenha sido removida, será
virtualmente impossível demonstrar a autenticidade do print screen sem os
referidos metadados, ou mesmo realizar perícia sobre ele.
Diante disso, resta claro
que é passível de utilização à luz do sistema processual cível da tecnologia
blockchain, justamente em razão da conformidade com o núcleo ontológico do tipo
"meio de prova", uma vez que resta claro que a tecnologia apresentada
possui o potencial de esclarecer o thema probandum, o fato da fonte da prova
ser um sistema, em nada obstaculiza a sua admissão, desde que, obviamente,
respeitados os limites da legalidade da prova. No mesmo sentido é a lição de
Michele Taruffo9, que diz que, se tratando documento informático assinado pelos
meios especiais legalmente estabelecidos, resulta equivalente a um documento
privado com a firma certificada.
Com o objetivo de
corroborar o entendimento acima exposto, pode-se citar a decisão do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, em que este permitiu a autenticidade de
documentos que constituíam meios de prova, por meio da plataforma blockchain,
sendo que o caso discutia a exclusão de postagens supostamente ofensivas a um
político veiculadas em redes sociais. Objetivando comprovar a existência do
conteúdo eletrônico na internet, o autor fez o registro utilizando não a ata
notarial, mas a plataforma blockchain.
A decisão judicial em
questão foi proferida em sede de agravo de instrumento contra decisão
interlocutória que, em ação de obrigação de fazer e não fazer, indeferiu o
pedido de tutela provisória visando à remoção de conteúdos disponibilizados em
páginas do Facebook, Instagram e Twitter e ao fornecimento de dados de dados de
usuários das referidas redes sociais.
No recurso de agravo o
autor (ofendido) pontuou ser "indispensável que os usuários não sejam
comunicados sobre a demanda, pois podem se desfazer de provas do ilícito".
No julgamento do recurso, a relatora Desembargadora Fernanda Gomes Camacho, que
foi acompanhada pelos demais membros do colegiado da 5ª Turma de Direito
Privado, pontuou que "o próprio recorrente afirmou que 'a partir do
conhecimento dos fatos, o autor providenciou a preservação de todo o conteúdo
via blockchain, junto à plataforma OriginalMy, hábil a comprovar a veracidade e
existência dos conteúdos"10.
O importante para o
presente ensaio é o fato de que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
levou em consideração o uso da tecnologia e acabou por considerar o conteúdo
registrado via blockchain hábil a comprovar a veracidade e existência dos
conteúdos, o que mostra a possibilidade de se utilizar da tecnologia blockchain
como um meio de prova hábil para comprovar a veracidade de documentos extraídos
da internet, o que se mostra de grande importância quando se trata da questão
da valoração probatória.
Por outro lado, não se
pode esquecer que a Ata Notarial, meio típico de prova devidamente previsto
pelo CPC e dotado de fé pública por ser autenticado com um notário, também
possui a finalidade de comprovar a veracidade de documentos diversos. Assim,
muitos estudiosos sobre o tema equiparam a autenticação gerada pela tecnologia
blockchain com a gerada pela Ata Notarial. Mas até que ponto é possível fazer
uma analogia entre ambas? Seria correto equiparar o blockchain a Ata Notarial?
Não restam dúvidas de que ambos são meios de provas, sendo a Ata Notarial é um
meio de prova típico, previsto no CPC em seu art. 384, sendo que a sua força
como meio de prova encontra-se no fato de que a veracidade do documento é
atestada por um tabelião, que possui fé pública. Por outro lado, a tecnologia
blockchain não possui previsão legal junto ao CPC, podendo ser considerada um
meio de prova atípico em virtude da falta de previsão legal. O fato do CPC
trazer uma previsão expressa sobre documentos eletrônicos não atesta tipicidade
para o blockchain, uma vez que se trata de uma tecnologia que confere
autenticidade para os documentos, não se tratando propriamente dos documentos
eletrônicos.
Não se busca exaurir as
discussões acerca do tema com o presente ensaio, o que se busca é demonstrar
que, apesar da aproximação das funcionalidades da tecnologia blockchain e da
Ata Notarial, ambas não devem ser equiparadas e já será demonstrado o motivo.
Ainda, não se busca alegar que a tecnologia blockchain não possa ser utilizada como
um meio de prova, uma vez que ela pode (e deve) ser utilizada para validar a
autenticidade de documentos (principalmente digitais) que se mostrariam ser
extremamente difíceis de comprovar a sua veracidade.
Mas, a equiparação da Ata
Notarial com o blockchain possui reflexos principalmente no momento de
valoração da prova, sendo que, apesar da autenticidade conferida a tecnologia
blockchain, esta não é conferida por um notário dotado de fé pública, motivo
pelo qual, a meu ver, ambos não devem ser equiparados. Caso haja a utilização
da tecnologia blockchain, pelo notário, o que se mostra totalmente possível, se
está diante de um caso em que a tecnologia blockchain poderia ser equiparada a
Ata Notarial, caso contrário, não.
Assim, resta claro que é
totalmente possível a utilização de blockchain, sendo que pode ser um meio
menos custoso para uma parte hipossuficiente de prover a veracidade de suas
provas junto ao processo.
Mas, não se está aqui a apregoar a validade plena e absoluta da prova produzida a partir do armazenamento das informações pelo blockchain, mas se está sim a defender o entendimento de que ela pode produzir efeitos válidos, mas que ela não substitui, ainda, a ata notarial, tendo em vista que a sua alteração resultaria na substituição da confiança atribuída pela lei ao notário.
Fonte: Migalhas