Ao que tudo indica, o Brasil não está
pronto para pôr em prática a tese segundo a qual o fator de incidência para a
cobrança do Imposto Sobre Transmissão inter vivos de Bens Imóveis (ITBI) é o
momento do registro no cartório de imóveis.
O enunciado foi fixado pelo Supremo Tribunal
Federal em julgamento com
repercussão geral, em fevereiro de 2021. A tese colocou os cartórios de notas
em uma sinuca de bico e ligou o alerta de arrecadação para os municípios,
responsáveis por tributar as operações imobiliárias.
Trata-se de um mercado que, segundo
estimativa da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário
(Ademi), movimentou R$ 99 bilhões em 2021 e tem tendência de alta para 2022,
apesar da taxa de juros e da pressão inflacionária.
O rito de quem adquire um imóvel passa
por lavrar a escritura de compra e venda no cartório de notas e, depois,
registrar a transferência da propriedade no cartório de registro de imóveis.
Segundo o STF, é só após esse último movimento que o ITBI pode ser cobrado.
O problema é que há na legislação
federal um complexo de normas ainda válidas que impõem aos notários e aos
oficiais de registro que exijam a comprovação do pagamento do ITBI para lavrar
escrituras relacionadas à transmissão de propriedade imóvel.
Para os municípios, isso é o que
garante que o tributo será devidamente recolhido. Caso contrário, o que ocorre
é a compra e revenda de imóveis em acúmulo de transmissões em que, sem o devido
registro no cartório de imóveis, não há a incidência do ITBI.
Essa cobrança antecipada é reforçada
por leis de muitos dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros. E, no âmbito
estadual, essa costumava ser a orientação das Corregedorias-Gerais de Justiça,
órgãos responsáveis pela fiscalização das atividades cartorárias.
Segundo o advogado Wallace Wu, do
escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados, o resultado prático são casos em
que cartórios, ao adotar a tese do STF e registrar as transferências sem a
comprovação de quitação do ITBI, correm o risco de serem sancionados e
processados.
"Em outros casos", disse ele,
"foi possível perceber que as partes contratantes têm utilizado essa tese
para não recolher o ITBI no ato da lavratura da escritura, em razão de
planejamento tributário e financeiro, como também para se certificar de que a
transferência da propriedade será registrada".
Cobrança antecipada
A possibilidade da cobrança antecipada
do ITBI teve a constitucionalidade contestada recentemente pelo PSDB. O partido
alegou que, apesar da tese do STF sobre o fato gerador do imposto, diversos
cartórios no país mantiveram a exigência da quitação para a efetuação do
registro da operação imobiliária.
São três as normas que criam uma sinuca
de bico para os notários. A primeira é o artigo 1º, parágrafo 2º, da Lei 7.433/1985, que prevê que o tabelião registre no
ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do ITBI. As
outras duas atribuem responsabilidade aos cartorários pelo cumprimento dessa
premissa.
O artigo 289 da Lei 6.015/1973 diz que cabe aos oficiais de registro
fazer "rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força
dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício". E o artigo 30 da
Lei 8.935/1994 estabelece como dever dos notários
"fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem
praticar".
Para o PSDB, a cobrança antecipada é
indevida, pois anterior ao fato gerador. A transmissão da propriedade
imobiliária e os direitos reais a ela relativos somente se dão mediante o
registro da operação.
A Advocacia-Geral da União discordou. Em parecer, argumentou que a apresentação do
comprovante de quitação do ITBI é mera garantia de que as obrigações
tributárias sejam cumpridas. Graças à tecnologia, o pagamento pode ser feito
até mesmo no ato da transferência efetiva da propriedade, na presença do
notário ou oficial de registro.
A Procuradoria-Geral da República
seguiu linha parecida. Ela afirmou em parecer que essa forma de atuar pelos
cartórios é constitucional, que a antecipação tributária está fundada em lei
formal e que há inescapável conexão entre as fases de assinatura do instrumento
público de compra e venda e o posterior registro no cartório de registro de
imóveis.
Em sentido oposto, as Corregedorias de
Justiça dos estados têm alterado suas regras e orientações de modo a se adequar
à tese do STF. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Ceará, no Amazonas, no
Espírito Santo e em Pernambuco.
No Paraná, a atualização do procedimento trouxe uma ressalva:
embora o fato gerador do ITBI seja o registro no cartório de imóveis, o notário
sempre recomendará, por razões de segurança jurídica, o recolhimento do imposto
antes da lavratura da escritura. Se mesmo assim a parte não pagar, o
título deverá conter a advertência de que o direito de propriedade só se
adquire mediante o registro da escritura no cartório de imóveis.
Em junho de 2021, o Plenário virtual do
STF optou por não conhecer da ação do PSDB (clique aqui para ler o acórdão). A corte entendeu que as normas contestadas estão
ligadas à responsabilidade tributária dos notários e registradores. Esta, por
sua vez, é prevista no artigo 134, VI, do Código Tributário Nacional, que
deveria ter sido, mas não foi contestado na ação.
Ruim para todo mundo
Assessor jurídico da Associação
Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais Brasileiras (Abrasf), o
advogado Ricardo Almeida Ribeiro da Silva afirma que o tema tem reflexo prático
gigantesco para os municípios, pois causa não só queda de arrecadação, como
permite a acumulação de atos de transferência e cessão de direitos de
propriedade.
Ele explica que, ainda que o momento do
fato gerador do ITBI seja o registro no cartório de imóveis, a antecipação da
cobrança oferece praticidade e segurança jurídica para as partes, o Fisco e os
notários e os registradores. "Só quem não tem boa-fé quer escapar do
recolhimento antecipado".
Isso porque a Constituição autoriza que
o tributo possa ser cobrado de qualquer uma das partes. A depender da
legislação municipal, mesmo o vendedor pode ser responsabilizado. Ele
possivelmente não conseguirá registrar a alienação do bem sem pagar o imposto.
"Ninguém faz escritura de compra e
venda definitiva se não for para levar a registro", continua Ribeiro da
Silva. Ele afirma que a aplicação da tese do STF cria "um cenário dantesco
desnecessário em que só se justifica essa demora nos casos de má-fé para
estimular evasão fiscal".
Além disso, a lavratura da escritura é
o momento mais importante da transação. É quando há a manifestação da
capacidade contributiva. Já o registro da operação no cartório de imóveis é apenas
um ato formal. "O fato gerador do ITBI, ainda que sem registro, pode ser
presumido", defende o assessor jurídico.
Enquanto isso, os municípios ficarão à
mercê da evasão tributária. Para mensurar o impacto, a Abrasf usou o exemplo de
Manaus, uma cidade de pouco mais de dois milhões de habitantes, cuja estimativa
é de que 8% das propriedades urbanas tenham ao menos um acúmulo de transmissão
não registrado.
São pessoas físicas e jurídicas que
compraram e revenderam imóveis, por meio de escrituras lavradas, e que não
registraram as transferências no cartório de imóveis. A Abrasf indicou ao STF a
existência de "um mercado de cessões de promessas de compra e venda,
cessões de escrituras de compra e venda e até de cessões de cessões, tudo para
evitar o pagamento do ITBI".
Como resolver
Para o advogado Wallace Wu, a resolução
desse embate normativo será feita pelos cartórios no caso a caso, a depender da
legislação municipal e das regras da Corregedoria-Geral de Justiça local.
Já Ricardo Almeida Ribeiro da Silva
destaca que a tese fixada pelo STF não é, ainda, definitiva. O município de São
Paulo, autor do recurso julgado pelo Supremo, interpôs embargos de declaração
contestando o procedimento usado pela corte para julgar o mérito.
"Não tem decisão dos tribunais
superiores com caráter vinculante e trânsito em julgado. Por isso, os
municípios não vão alterar (suas normas). Tem gente até entrando com ação,
conseguindo liminares. Mas a posição dos municípios é baseada na Constituição,
na lei federal e em precedentes".
Recentemente, a ConJur noticiou a aplicação da tese do STF em processo julgado na Justiça
estadual e o uso dela pelo Superior Tribunal de Justiça. A
revista eletrônica publicou também dezenas de artigos com opiniões de
especialistas sobre o tema.
Para Florence Haret Drago, do NHM Advogados, a interpretação
constitucional dada pelo STF torna inadmissível a cobrança antecipada do ITBI e
o respaldo do Judiciário a qualquer demanda judicial nesse sentido tem grandes
chances de êxito, seja de forma preventiva ou mesmo repreensiva — para
restituir valores que tenham sido pagos antes da hora, por exemplo.
Amanda Oliveira Falcão, do Diamantino
Advogados Associados, classificou a decisão do STF como acertada. E Ana
Lúcia Pereira Tolentino, do Braga & Garbelotti, acredita que é de se esperar que municípios e
oficiais de registro de imóveis não mais insistam no recolhimento antecipado do
ITBI.
Artigo assinado por Priscila Faricelli,
Marc Stalder e Marco Favini reforça essa necessidade de readequação dos
municípios, para afastar a insegurança jurídica e os processos ajuizados por
contribuintes. Já a advogada Ana Carolina Osório, do escritório Osório Batista
Advogados, informou que já há mudança significativa nos
procedimentos adotados em alguns cartórios.
ARE 1.294.969 (STF)
ADI 7.086 (STF)
AREsp 1.760.009 (STJ)
Fonte: ConJur