A principal confusão que se observa
neste tema é a falta de conhecimento dos institutos da meação e da herança. O
legislador do Código Civil de 2002 tinha a intenção de deixar bem delineada a
distinção entre os termos supracitados. No entanto, o que vemos na prática é um
mito que persegue a sociedade em geral.
Isto porque muitas pessoas leigas no
Direito acreditam que quando o casamento é regido pela separação convencional
de bens, o cônjuge não terá direito a nenhum quinhão dos bens deixados pelo de
cujus. E tal afirmação é completamente equivocada, uma vez que o cônjuge
sobrevivente neste caso é herdeiro (tem direito à herança) porém não é meeiro
(não tem direito à meação).
Expliquemos. Sob o ponto de vista
técnico, a meação está no Direito de Família enquanto a herança pertence ao
Direito das Sucessões. Ademais, o cônjuge não pode ser, de acordo com a norma
vigente, herdeiro e meeiro ao mesmo tempo no que tange ao mesmo bem. De acordo
com o regime de bens adotado, o cônjuge sobrevivente será meeiro ou herdeiro,
nunca os dois no que se refere a um determinado bem.
O brilhante professor Flávio Tartuce
elaborou uma tabela [1] com o objetivo de facilitar o entendimento do assunto.
Vejamos.
Regimes em que o cônjuge ou o companheiro herda em concorrência |
Regimes em que o cônjuge ou companheiro não herda em concorrência |
·
Regime da comunhão parcial de bens (quando o falecido deixa bens
particulares) ·
Regime da participação final nos aquestos ·
Regime da separação convencional/total de bens |
·
Regime da comunhão parcial de bens (quando o falecido deixa apenas
bens comuns, não havendo nenhum bem particular) ·
Regime da comunhão universal de bens ·
Regime da separação legal ou obrigatória de bens |
Neste sentido, imprescindível ressaltar
os decisórios do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no EREsp 1.472.945/RJ e
REsp 1.382.170/SP, que adotaram posição no sentido de que o artigo 1.829, I, do
CC02 é norma de ordem pública, não podendo ser afastada pela vontade das
partes.
Sendo assim, uma vez que a legislação
não previu a separação convencional de bens como uma exceção capaz de afastar a
concorrência, ou seja, o direito à herança do cônjuge sobrevivente, as partes
não têm a faculdade de escolher casar-se por este regime sem que o outro passe
a ser necessariamente o seu herdeiro.
Em outras palavras, a partir do momento
em que um indivíduo opta por se casar no regime da separação convencional de
bens, automaticamente — e obrigatoriamente — o seu cônjuge passa a ser seu
herdeiro caso este venha a falecer.
O equívoco que se instaurou no público
em geral advém justamente da distinção entre o que ocorre com os bens quando um
casal casado pelo regime da separação convencional de bens se separa e quando um
destes vem a falecer. Isso porque, no caso de término da sociedade conjugal,
nenhuma das partes tem direito ao patrimônio do outro, pois os bens são
particulares, ou seja, não se comunicam.
Em suma, a atual codificação civil
permite que os sujeitos casados pelo regime da separação convencional de bens
escolham o sistema que regerá os seus bens em caso de separação porém não
autoriza que estas mesmas pessoas definam o rumo da totalidade dos seus bens
quando da sua morte, pois o seu cônjuge sobrevivente será, por imposição legal
inafastável, seu herdeiro necessário.
Neste ponto, interessante colacionar
trecho do voto vencedor no REsp 1.382.170/SP, in verbis:
"Quem determina a ordem da vocação
hereditária é o legislador. Ele pode construir um sistema para a separação em
vida diverso do da separação por morte. E ele o fez. Ele estabeleceu um sistema
para a partilha dos bens por causa mortis e outro sistema para a separação em
vida decorrente do divórcio. O legislador distinguiu. Então, a interpretação
aqui é sistemática sim, mas dentro dos respectivos sistemas. Não posso pegar um
princípio daqui e outro princípio dali, fazer uma miscelânea e criar uma norma
diferente daquela que está no Código. (...) Como decidi no voto divergente
proferido no REsp nº 1.111.095/RJ —, embora a hipótese lá tratada não seja
exatamente igual à do caso presente —, 'importa destacar que, se a lei fez
algumas ressalvas quanto ao direito de herdar em razão do regime de casamento
ser o de comunhão universal ou parcial, ou de separação obrigatória, não fez
nenhuma quando o regime escolhido for o de separação de bens não obrigatório,
de forma que, nessa hipótese, o cônjuge casado sob tal regime, bem como sob
comunhão parcial na qual não haja bens comuns, é exatamente aquele que a lei buscou
proteger, pois, em tese, ele ficaria sem quaisquer bens, sem amparo, já que,
segundo a regra anterior, além de não herdar (em razão da presença de
descendentes) ainda não haveria bens a partilhar'."
A doutrina caminha nesta mesma
orientação, consoante verifica-se pela leitura do Enunciado 270 do CJF, ipsis
litteris:
"O art. 1.829, inc. I, só assegura
ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor
da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se
casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o
falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se
restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados
exclusivamente entre os descendentes."
Com função meramente didática,
analisemos o quadro abaixo, o qual busca auxiliar o entendimento do tema.
Regime da separação convencional de bens no caso de fim da sociedade
conjugal (divórcio/separação/dissolução da união estável) |
Regime da separação convencional de bens no caso de morte de um dos
cônjuges |
Direito de Família |
Direito das Sucessões |
As partes optaram por regime em que os bens não se comunicam. |
A escolha por este regime tem efeito apenas em vida, por imposição
legal que não pode ser afastada pelas partes. |
Cada cônjuge permanecerá com os seus particulares, não havendo direito
de um sobre o outro. |
O cônjuge sobrevivente obrigatoriamente será herdeiro. |
Não há como estudar este tópico sem
citar a falha legislativa escancarada no texto do artigo 1.829, I, do CC02. O
referido dispositivo menciona o artigo 1.640 do mesmo diploma porém, em
realidade, deveria citar o artigo 1.641, que dispõe acerca da separação
obrigatória de bens.
Este equívoco abriu brecha no passado
para ampla discussão jurídica que debatia se o legislador havia feito uma
exceção afastando o cônjuge sobrevivente da concorrência na herança apenas nos
casos de separação obrigatória dos bens (artigo 1.641) ou também nas hipóteses
de adoção do regime de separação convencional de bens.
Atualmente, a posição que prevalece é
que o mencionado dispositivo carrega um erro que deve ser sanado pelo
legislador, posto que a intenção deste era afastar da condição de herdeiro
somente o cônjuge sobrevivente da sociedade conjugal regida pela separação
legal de bens, mantendo-se, assim, o cônjuge sobrevivente da sociedade conjugal
regida pela separação convencional de bens como herdeiro necessário.
Referências bibliográficas
BRASIL. Código Civil. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ L10406.htm. Acesso em: 8 ago. 2022.
______. Superior Tribunal de Justiça.
EREsp 1.472.945/RJ. Relator: Antonio Carlos Ferreira. Disponível em:
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/
documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=49440956&num_registro=201303350033&data=20150629&tipo=5&formato=PDF.
Acesso em: 8 ago. 2022.
______. Superior Tribunal de Justiça.
REsp 1.382.170/SP. Relator: João Otávio de Noronha. Disponível em:
https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/ ?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201301311977&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea.
Acesso em: 8 ago. 2022.
TARTUCE. Flávio. Manual de Direito
Civil: volume único. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, MÉTODO, 2018,
p. 1692-1714.
[1] TARTUCE. Flávio. Manual de Direito
Civil: volume único. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, MÉTODO, 2018,
p. 1693.
Raul Bergesch é advogado na área do Direito
Empresarial, especialista em proteção patrimonial, sócio fundador do escritório
Raul Bergesch Advogados, membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial
(Ibrademp) e da Comissão de Direito Falimentar da OAB-RS, Subseção de Novo
Hamburgo.
Fonte: ConJur