1) Introdução
Nesta última parte, será analisado o
tema das modalidades de lançamento tributário do ITBI. Também nesta matéria, o
voto-condutor do ministro Gurgel de Faria é disperso e genérico sobre as
modalidades de lançamento cabíveis, extrapolando a discussão do caso concreto,
que se restringe ao litígio sobre a base de cálculo do ITBI em arrematações de
imóveis em hastas públicas, envolvendo apenas a disputa sobre a utilização, ou
não, do "valor venal da planta genérica do IPTU ou do valor pago em juízo
pelo arrematante, o que fosse maior".
2) Contradições e equívocos do acórdão
do RESP 1.937.821. Lançamento por declaração ou por homologação? Definição de
arbitramento
Similar ao que se verifica na parte do
voto que trata da base de cálculo do ITBI, o ministro Gurgel de Faria extrapola
o objeto da causa decidida em relação às "modalidades de lançamento"
e traz argumentos contraditórios e descolados da realidade normativa fiscal da
maioria dos municípios.
Ele parte da premissa de que o
município de São Paulo realizara um "lançamento por declaração", uma
vez que, diante da informação prestada pelo adquirente, não poderia realizar um
lançamento de ofício, baseado em avaliação única pré-fixada. Segundo o voto, só
poderia realizar um "lançamento por arbitramento". Afirma-se, ainda,
que o lançamento por arbitramento (previsto no artigo 148 do CTN) exige um
contraditório prévio, constituindo-se numa espécie de "ato bilateral"
ou de "procedimento dialético" obrigatório.
Confira-se:
"Lançamento por Declaração ou
Homologação
Após cuidadosa reflexão, cheguei à
conclusão de que o ITBI, em razão de seu fato gerador, somente comporta duas
das modalidades de lançamento originário: por declaração ou por homologação, a
depender da legislação municipal de cada ente tributante, sendo inviável ao
fisco proceder, de antemão, ao seu lançamento de ofício.
Se a norma local exigir prévio exame
das DECLARAÇÕES DO CONTRIBUINTE pela Administração para a constituição do
crédito tributário, estaremos diante de um lançamento por declaração.
Nessa modalidade de lançamento, em face
do princípio da boa-fé objetiva, presume-se que o valor da transação declarado
pelo contribuinte está condizente com o valor venal de mercado daquele
específico imóvel, presunção que somente pode ser afastada pelo fisco se esse
valor se mostrar, de pronto, incompatível com a realidade, a justificar a
instauração do procedimento próprio para o arbitramento da base de cálculo, em
que assegurado ao contribuinte o contraditório necessário para apresentação das
peculiaridades que justificariam o quantum informado.
(...)
Entretanto, se a legislação municipal
disciplinar que caberá ao contribuinte apurar o valor do imposto e efetuar o
seu pagamento antecipado sem prévio exame do ente tributante, estaremos diante
de um LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. (...)
Tanto o lançamento por declaração
quanto o (lançamento) por homologação estão justificados pelas inúmeras
circunstâncias já referidas que podem interferir no específico valor de mercado
de cada imóvel transacionado, circunstâncias cujo conhecimento integral somente
os negociantes têm ou deveriam ter para melhor avaliar o real valor do bem quando
da realização do negócio.
(...)
No caso, diversamente do afirmado pelo
município recorrente, a sua tributação do ITBI não se dá por homologação, visto
que não há pagamento antecipado do imposto sem prévio exame do fisco, mas, ao
contrário disso, a Administração impõe ao contribuinte o valor do crédito a ser
recolhido.
(...)
Esse denominado valor venal de
referência, ou equivalente, quando muito, poderá justificar a ação fiscal para
apurar a veracidade da declaração prestada, mas, em hipótese alguma, pode
servir para antecipar tal juízo [...]"
Entretanto, ao contrário do que
presumiu o voto, a imensa maioria dos municípios não realiza lançamento por
declaração.
O fornecimento de guia para o pagamento
do ITBI decorre de solicitação formulada pelo interessado nos sistemas das
secretarias de fazenda ou de finanças. A guia expedida não é lançamento
tributário, já que não é definitiva, não permite a exigibilidade do imposto em
caso de não-pagamento na data ou no prazo apontando no documento, tampouco
enseja penalidades, inscrição em dívida ativa, cobrança extrajudicial ou
judicial (execução fiscal). A guia de ITBI expedida traz apenas um pré-calculo
do imposto, não definitivo, e discutível mediante pedido administrativo de
reavaliação do imóvel, sendo desnecessário que o requerente seja parte na
transação imobiliária futura — inclusive porque a imensa maioria das
solicitações de guias antecede a própria constituição do título aquisitivo.
Este é o procedimento adotado no
município de São Paulo, no qual, em 2021, foram expedidas mais de 200 mil guias
de ITBI, tendo sido protocolados apenas 80 requerimentos de reavaliação dos
imóveis para alterar guias destinadas ao recolhimento antecipado do imposto.
No caso, a Fortress pediu a guia com o
pré-cálculo do ITBI e pagou voluntariamente o valor nela indicado. Caso não
pagasse, não ficaria sujeita ao lançamento tributário, mas apenas à eventual
fiscalização, diante da arrematação de imóvel em hasta pública.
A maioria dos municípios não prevê e
não realiza lançamentos por declaração ou lançamentos de ofício baseados em
valores pré-fixados. A guia com valor indicado para pagamento voluntário
contempla apenas um pré-cálculo do imposto, cujo pagamento é exigido
antecipadamente à celebração do título aquisitivo ou, se este já tiver sido
constituído, antes do registro no RGI.
Diante dessas características e das
normas de regência, estes atos e procedimentos fiscais só podem ser enquadrados
como lançamentos por homologação. Os demais atos realizados pelos interessados
são de colaboração.
A vinculação da guia ao valor entendido
como correto pelo Município, a partir de suas avaliações periódicas, de outras
aquisições informadas voluntariamente pelos contribuintes ou de pesquisas
sistemáticas, inclusive com uso de I.A. e acesso a bancos de dados públicos ou
publicizados — v.g. o convênio do município de São Paulo com o "Zap
Imóveis", cruzando dados deste com os de outros bancos de dados —, tem por
objetivo evitar a necessidade de fiscalizações a posteriori, vista a facilidade
de se manipular o recolhimento (a menor) do imposto, pela informação unilateral
do preço da escritura.
Vale lembrar que o subfaturamento de
bens imóveis na celebração de escrituras públicas é corriqueiro no país,
objetivando ocultar recursos por meio de possível valorização futura do imóvel
adquirido. Deixar às partes a definição da base de cálculo para o recolhimento
antecipado do imposto desnatura o seu caráter patrimonial e representa um
grande incentivo à sonegação tributária e à criminalidade financeira no país.
Portanto, os procedimentos fiscais que
exigem a informação do valor por parte do interessado, a expedição de guia pela
prefeitura com o pré-cálculo do imposto (que poderá ser contestado mediante
pedido de revisão de avaliação), e a exigência do recolhimento antecipado só
podem ser enquadrados na modalidade de lançamento prevista no artigo 150, CTN.
Trata-se de hipótese de incidência em que é dever do contribuinte antecipar o
pagamento do ITBI antes da lavratura do título aquisitivo ou, quando este
ocorrer sem o recolhimento prévio, antes do seu registro junto ao RGI.
Outro ponto importante é a compreensão
do que se deve entender como "lançamento por arbitramento". A
interpretação dada pelo Acórdão sobre o ato e procedimentos realizados à luz do
artigo 148, CTN, é inusitada ao definir o arbitramento como uma espécie de ato
ou procedimento bilateral, contrariando toda a doutrina. Destaca-se alguns
desses trechos do voto:
"RESP 1.937.821
Lançamento por Arbitramento
Constata-se, dessa forma, que, dadas as
características próprias do fato gerador desse imposto, a sua base de cálculo
deverá partir da declaração prestada pelo contribuinte, ressalvada a
prerrogativa da administração tributária de revisá-la, antes ou depois do
pagamento, a depender da modalidade do lançamento, desde que instaurado o
procedimento administrativo próprio
(...)
no ITBI, a base de cálculo deve
considerar o valor de mercado do imóvel individualmente considerado, que, como
visto, resulta de uma gama maior de fatores, motivo pelo qual o lançamento
desse imposto se dá, originalmente e via de regra, por declaração do
contribuinte, ressalvado o direito da fiscalização tributária de revisar o
quantum declarado, por meio de regular instauração de processo administrativo.
(...)
(...) não dispondo de todos os
elementos fáticos necessários ao juízo de certeza quanto ao valor do imóvel
transmitido, não há como a Administração dispensar a participação do
contribuinte no procedimento regular de constituição do crédito para estabelecer,
antecipada e unilateralmente, a base de cálculo.
Além disso, a adoção desse valor de
referência como primeiro parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI,
com a inversão do ônus da prova ao contribuinte para demonstrar o contrário,
subverte o procedimento instituído no art. 148 do CTN, pois, a toda evidência,
resulta em arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à
fidedignidade da declaração do sujeito passivo. Esse denominado valor venal de
referência, [...], acaba por subtrair a garantia do contraditório assegurada ao
contribuinte, cujo exercício pressupõe a prévia instauração de regular processo
administrativo."
Está mal identificada a modalidade de
lançamento adotada pelo município de São Paulo, que não realiza lançamento por
declaração do ITBI, mas sim por homologação.
Em caso de lavratura de escritura
mediante pagamento a menor do ITBI ou sem o seu respectivo pagamento,
configurar-se-á a hipótese em que a autoridade fiscal não homologará o
recolhimento, podendo lançar de ofício o valor total ou da diferença.
Este lançamento de ofício é uma
hipótese de lançamento por arbitramento, sem exigência de participação
obrigatória do contribuinte a posteriori. O ato ou omissão do contribuinte
quanto ao recolhimento do ITBI, inclusive quanto ao valor da respectiva base de
cálculo, já existe, nestes casos, antes da atuação fiscal. Isso não quer dizer
que a administração fiscal não precise informar e fundamentar o lançamento
tributário (por arbitramento), demonstrando qual é o montante do imposto devido
e fundamentando porque o valor do imposto foi pago a menor ou inadimplido.
Ainda que o lançamento do ITBI
decorresse de declaração, tal arbitramento não exigiria a participação do
contribuinte, já que é ato unilateral e irreversível, decorrente do exercício
de poder-dever da administração tributária. Aliás, não extrai do art. 148 do
CTN sentido diverso.
A contestação e avaliação contraditória
não integram o procedimento de lançamento, apenas o processo administrativo
tributário, por meio do qual o contribuinte ou responsável pode exercer a sua
ampla defesa.
O direito constitucional de impugnar o
lançamento tributário não transforma o lançamento num ato bilateral ou num
procedimento dialético obrigatório que, só após ouvido o contribuinte, conclui-se.
Como prevê o artigo 142 do CTN, o Contribuinte não participa nem realiza
lançamento, pois é atividade vinculada, exclusiva e definitiva, de competência
da autoridade fiscal. Atos de colaboração dos sujeitos passivos têm apenas
caráter informativo ou de pagamento antecipado, não impedindo ou condicionando
a constituição do crédito tributário e a sua exigibilidade, como sedimentado
pela doutrina. Paulo de Barros Carvalho já assinalou que a suscetibilidade a
impugnações seria predicado de todos os atos administrativos, o que não lhes dá
caráter provisório.
Bernardo Ribeiro de Moares ressalta a
competência exclusiva do sujeito ativo para constatar a ocorrência do fato
gerador e adiciona que:
"Quando o contribuinte determina a
existência da obrigação e o seu montante, tal procedimento não pode ser
comparado às atividades do órgão estatal. O sujeito passivo está apenas
aplicando espontaneamente a norma legal [...]. A declaração tributária, feita
pelo sujeito passivo, também, não é lançamento. O ato do particular em calcular
o montante do imposto para efeitos de retenção como fonte pagadora também não é
lançamento. Quando a lei atribui ao próprio sujeito passivo o encargo de
antecipar o pagamento do tributo, sob ressalva de ulterior homologação, não
temos ainda o lançamento (falta a homologação do Poder Público) e nem a
liquidação do crédito tributário (o pagamento do tributo teve assento em um ato
realizado pelo particular). Somente a autoridade administrativa é que pode
realizar o lançamento, procedimento administrativo unilateral; b) o lançamento
é um procedimento vinculado. (...) c) o lançamento é um ato obrigatório, de
realização obrigatória" [1].
3) Conclusão
O REsp 1.937.821 se equivoca nos fatos
e se contradiz acerca das modalidades de lançamento cabíveis e realizadas para
o ITBI no âmbito do município de São Paulo e de diversas municipalidades
brasileiras.
É equivocado entender que a guia de
pagamento (antecipado) solicitada pelo interessado configura uma espécie de
"lançamento por declaração". Ela encerra apenas um pré-cálculo do
imposto, permitindo o recolhimento prévio ou concomitantemente do ITBI à
realização do ato ou negócio jurídico que configure fato gerador ou obrigação
de pagá-lo. Caso o interessado não concorde com o valor da base de cálculo ou
do imposto nela apontado, poderá requerer sua revisão em procedimento
administrativo de recálculo. Destarte, a guia expedida originalmente ou
revisada não configura um lançamento tributário, sobretudo porque o
não-pagamento do valor nela apontado não faz surgir a exigibilidade do imposto,
nem sujeita o contribuinte a penalidades, à inscrição em dívida ativa e/ou à
executoriedade judicial. O eventual prazo apontado na guia tem relação apenas
com o tempo de validade da avaliação. Não se trata de vencimento de obrigação
de pagar ou de dívida. Portanto, a "modalidade de lançamento" só pode
ser enquadrada como "por homologação".
Sobre o "lançamento por
arbitramento", vale dizer que, quando a municipalidade está diante de um
fato gerador realizado sem o devido recolhimento do ITBI ou com informação de
base de cálculo diversa da que entende correta, deverá realizar lançamento por
arbitramento, pois não acreditou nos valores, informações ou documentos
produzidos pelo contribuinte perante terceiros ou junto à própria administração
tributária.
Mesmo nos casos de lançamento por
homologação, a "não-homologação" resulta num lançamento por
arbitramento, como nos casos mais conhecidos de desconsideração da escrita
fiscal ou de livros comerciais (Diário ou Razão) na fiscalização dos impostos
sobre consumo, tais como o IPI, ICMS e ISSQN.
Porém, o lançamento por arbitramento
não depende de ato do contribuinte para sua conclusão, à luz do artigo 142 do
CTN. O ato de lançamento é unilateral, definitivo, irrevisível e exclusivo da
autoridade tributária. Como a doutrina acentua em uníssono: contribuinte não
realiza lançamento tributário. Pode e deve praticar, apenas, atos de
colaboração com o Fisco. Realizado o lançamento tributário, o contribuinte tem
o direito de impugnar administrativa e judicialmente o lançamento, o que não
significa que o arbitramento resulta de um "ato bilateral" ou de um
procedimento dialético prévio, com a indispensável ou necessária participação
do contribuinte.
______________
[1] Moraes, Bernardo Ribeiro de. In:
Caderno nº 1 de pesquisas tributárias. CEEU/Resenha Tributária, 1976. p. 32-4.
______________
Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é professor da pós-graduação em
Direito Tributário da Uerj/Ceped e do PJT/ABDF (Associação Brasileira de
Direito Financeiro), mestre em Direito Público pela Uerj, procurador do
município do Rio de Janeiro, assessor jurídico da Abrasf e advogado.
Fonte: ConJur