O Direito de Família está cada vez mais
contratualizado. Isso se deve ao desenvolvimento, compreensão e valorização da
autonomia privada, palavra de ordem do Direito Civil contemporâneo, e
especialmente no Direito de Família. Paulo Lôbo, com a autoridade de um dos
maiores juristas brasileiros, na Revista IBDFAM nº 53 propõe a
substituição de tal expressão por "autodeterminação
existencial", reforçando, aprofundando e resignificando tal conceito [1]. Essas ideias vinculam-se diretamente à
psicanálise, na medida em que foi ela quem revelou, e desvendou, o sujeito de
direitos como sujeito de desejo. E nada mais privado e subjetivo do que o
desejo. Se o sujeito de direitos é um sujeito desejante, faz-se necessário
reconhecer e respeitar as particularidades e subjetividades desejantes. É aí
que a autonomia privada começa, perpassa e termina: no desejo. Isso significa
respeito à humanidade de cada um de nós com todas as suas idiossincrasias. É o
respeito à dignidade humana, macroprincípio constitucional, que é também o
vértice do Estado Democrático de Direito.
O casamento é um contrato solene e
formal, para regulamentar aspectos patrimoniais, existenciais e afetivos. A
maioria das pessoas se casa sem questionar as regras gerais do casamento, como
num "contrato por adesão:. Entram no regime de bens
"automático", ou seja, não fazem pacto antenupcial e portanto se casam
pelo regime da comunhão parcial de bens. Me parece um regime justo. O que pouca
gente sabe é que se pode inventar o regime de bens que quiser, como já dispunha
o CCB 1916 e depois repetido no CCB 2002: "É lícito aos nubentes, antes de
celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes
aprouver" (Artigo 1.639). Sabe-se menos ainda que é possível estabelecer
nestes pactos cláusulas não patrimoniais. Obviamente que para isso é necessário
que se faça uma escritura pública, que deve ser levada ao cartório de registro
civil juntamente com a "papelada" para se casar.
Com o realce e valorização da autonomia
privada, começam a fazer parte de nossa realidade jurídica as cláusulas
existenciais nos pactos antenupciais, como já acontece em outros países. Se
tais cláusulas não ferem a ordem pública, elas terão validade e eficácia. A
questão então é: o que fere e afronta a ordem pública? Por exemplo, estabelecer
que o casal poderá ter uma "relação aberta", ou seja, que não têm o
dever de fidelidade, fere a ordem pública? Deve-se respeitar essa
particularidade e intimidade? Cada casal pode fazer o seu código particular?
Essas questões nos remetem a uma compreensão mais ampla e profunda sobre o sexo
e sexualidade e qual o limite entre público e privado. O Direito de Família
contemporâneo exige de nós esta reflexão e compreensão.
Sexualidade vai muito além do sexo, e
está presente em todo o Direito de Família. É um sistema de relações, afetos,
instituições, expectativas e fracassos. Sexo é fricção e fantasia, como tão bem
disse o autor espanhol José Antônio Marina [2]. E foi assim que o casamento tornou-se o
legitimador das relações sexuais [3]. Mas a sexualidade, que tradicionalmente estava no
campo da moral social, foi privatizada e hoje pertence à vida íntima de cada
um. Por isso, inclusive, é importante e conveniente deixar claro as regras de
uma convivência conjugal. Falar e escrever sobre isso, por mais incômodo que
seja, significa em última análise cuidar do amor [4]. A livre expressão do amor e do afeto só se tornou
possível porque está sustentada por um novo discurso sobre a sexualidade.
Nos países do sistema common law,
especialmente nos EUA, são conhecidos os pactos de casais famosos envolvendo
sexo e patrimônio. A atriz Jennifer Lopes e o ator Bem Affeck, segundo notícias
de jornais, estabeleceram em seu pacto antenupcial a obrigação de relações
sexuais de qualidade, quatro vezes por semana; Catherine Zeta-Jones e Michael
Douglas condicionaram o casamento a tratamento do noivo de um distúrbio
ninfomaníaco, sob pena de multa milionária; Nicole Kidman estabeleceu em seu
pacto pré-nupcial que o cantor Keth Urban receberia um prêmio de US$ 600 mil
por ano se ele se mantivesse livre de drogas ilícitas e não tivesse relação com
outras mulheres; o criador do Facebook, Mark Zuckerberg, conhecido como
um workaholic, estabeleceu em seu pacto com Priscilla Chan que, além de
fazer sexo no mínimo uma vez por semana, ele deveria ter pelo menos cem minutos
de tempo dedicado a ela; Justin Timberlake e Jessica Biel estabeleceram multa
em caso de traição.
Na Inglaterra, a rainha Elizabeth II exigiu que William e Kate Middleton assinassem um pacto antenupcial em que ela perderia o título de duquesa, o trono, a casa e a guarda dos filhos, e seria impedida de falar com a mídia, se se divorciasse.
Em Portugal, o Artigo 405º do CC deixa
explícito a ampla liberdade contratual: "1. Dentro dos limites da
lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos,
celebrar contratos diferentes dos presentes neste código ou incluir nestas
cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato
regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na Lei".
Mais adiante o mesmo código estabelece em seu Artigo 1.699º o que não pode
constar no pacto antenupcial: regulamentação da sucessão hereditária;
alterações dos direitos e deveres conjugais e parentais; alterar as regras da
administração dos bens; estipulação da comunicabilidade dos bens enumerado no
Artigo 1.733.
Esses acordos pré-nupciais, ou pactos
antenupciais, como os chamamos no Brasil, apesar da espetacularização que
trazem consigo, revelam a liberdade, e nos ensinam sobre esta
"autodeterminação existencial", que começa, cada vez mais, a ganhar
campo e corpo na realidade jurídica brasileira, repita-se. É óbvio que o
CCB-2002 não previu expressamente sobre estas questões existenciais, pois é um
código engendrado no contexto de uma família e estrutura patriarcal,
patrimonializada e hierarquizada, e esses eram assuntos velados e sobre os
quais não se podia falar. Mas o Enunciado 635 da VIII Jornadas de Direito
Civil, que faz interpretações, inclusive, do CCB, não deixa sombra de dúvida
sobre a sua possbilidade: "O pacto antenupcial e o contrato de
convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os
princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da
solidariedade familiar".
As cláusulas existenciais mais comuns
estabelecidas em contratos e pactos antenupciais são: divisão de tarefas
domésticas, privacidade em redes sociais, indenização pela infidelidade, sobre
técnicas de reprodução assistida heteróloga, educação religiosa dos filhos, se
um dos cônjuges/companheiros poderá, ou não, ser curador do outro em caso de
demenciamento etc.
Não há limites para a criatividade.
Cada casal pode e deve construir e respeitar o seu código particular. E aqui
entra uma reflexão: estabelecer práticas de sadomasoquismo, como fez o casal do
livro/filme "Cinquenta tons de cinza" ultrapassa os limites da ordem
pública? Ou é apenas uma prática não comum? Afinal, sexo ilegítimo é tão
somente aquele que é praticado sem o consentimento de uma das partes, e com
pessoas vulneráveis. Se tais cláusulas não ultrapassarem a barreira da
dignidade humana e não afrontarem a ordem pública, podem ser estabelecidas.
Combinar regras de convivência é cuidar
do amor. O combinado não sai caro. Estabelecer cláusulas patrimoniais e
existenciais em um pacto antenupcial, ou mesmo pós-nupcial, ou contrato de
união estável, pode evitar muito mal-estar no futuro, e a possibilidade de a
conjugalidade dar certo é maior. Mesmo que tais obrigações sejam de difícil
cumprimento ou ineficazes juridicamente, ainda assim elas são importantes, pois
podem funcionar como diretrizes para o casal. São sinais e conexões com a
responsabilidade e liberdade, e têm também um valor simbólico e pedagógico. É
como a prática, comum nos EUA, dos testamentos éticos.
Alguém deixa uma recomendação aos seus
herdeiros para que sigam determinadas condutas éticas e morais na vida. Outro
exemplo: a obrigação de "ter quatro relações sexuais de qualidade por
semana", além de ridícula, não tem como ser provado o seu cumprimento ou
descumprimento, a não ser que ao final de cada relação um desse recibo ao
outro. E, mesmo assim, a avaliação de que foi de qualidade é relativa e
pessoal. Entretanto, foi estabelecido ali um parâmetro para aquele casal. Essas
regras e particularidade devem ser respeitadas. O Estado não pode interferir
nessa intimidade e pretender regular a economia do desejo das pessoas. Isto
seria uma interferência indevida e morais na autodeterminação existencial.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado, presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito
de Família (IBDFAM), doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de
vários artigos e livros em Direito de Família e psicanálise.
Fonte: Conjur