Princípio da efetividade processual, incluída a atividade
satisfativa
O artigo 4º do Código de Processo Civil de 2015 elencou
como norma fundamental o princípio da efetividade processual, ao dispor: "As
partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito,
incluída a atividade satisfativa".
Trata-se de norma fundamental que integra o próprio conceito do acesso à
justiça ou inafastabilidade da jurisdição (artigos 5º XXXV da CF, e 3º
CPC). Significa que não basta garantir a possibilidade de acionar a prestação
jurisdicional e remover seus entraves [1]. É preciso que o processo seja efetivo, com a resolução do conflito no
"mundo dos fatos" em tempo razoável.
Nas palavras de Guilherme Botelho, a garantia do acesso
consiste no "direito ao processo qualificado", ou seja: assegura-se o
direito de buscar o Poder Judiciário, de participar de um processo efetivo,
baseado no diálogo e igualdade das partes, e que proporcione um resultado
qualificado — não necessariamente de procedência, mas de proteção do
direito material [2].
Nesse contexto, podem-se extrair alguns desdobramentos do
princípio da efetividade previsto no artigo 4º do CPC: 1) a primazia ou
preferência pelo julgamento do mérito, de modo a evitar a extinção do processo
sem a solução do conflito (artigo 485, CPC). A título exemplificativo, podem-se
apontar os artigos 317 e 932, parágrafo único, do CPC, segundo os quais, antes
de proferir decisão sem resolução do mérito ou inadmitir o recurso, é preciso
intimar a parte para corrigir o vício ou complementar a documentação; 2) a
compreensão de que a solução integral do mérito inclui a atividade satisfativa,
ou seja, o efetivo cumprimento da obrigação contida na decisão proferida,
independentemente de sua natureza — fazer, não fazer ou pagar quantia; e 3) a
previsão legal do princípio da razoável duração do processo, já incorporado ao
artigo 5º, LXXXVIII pela EC 45/2004.
Da dificuldade de concretizar a atividade satisfativa e a
possibilidade penhora de créditos do devedor
A existência de dispositivos legais que buscam parametrizar o Poder Judiciário
para alcançar a integral solução do mérito — incluída a atividade
satisfativa — e em tempo razoável pode ser considerada um retrato da
dificuldade encontrada na prática nos processos de execução. De fato, conseguir
executar a obrigação constante no título executivo nem sempre (para falar o
mínimo) é tarefa fácil.
No relatório Justiça em números 2021,
elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Seção 5.3 trata
especificamente sobre os "Gargalos da execução". Antes mesmo de
iniciar a análise dos números e taxa de congestionamento, afirma-se que os
processos em fase de execução constituem grande parte dos casos em trâmite no
primeiro grau de jurisdição e a etapa de maior morosidade [3].
Apesar de o número de novos processos de conhecimento
distribuídos representarem quase o dobro de novos processos de execução, quando
se olha para o acervo processual, constata-se que os números dos processos de
execução é 32,8% maior. Em suma: chegam ao Judiciário quase duas vezes mais
processos de conhecimento do que de execução, porém os processos na fase de
conhecimento possuem maior celeridade na tramitação e, consequentemente, o estoque
dos processos de execução é consideravelmente superior [4].
Uma das causas da alta taxa de congestionamento dos
processos em fase de cumprimento (títulos judiciais ou extrajudiciais) é,
justamente, a dificuldade de localização dos bens do devedor. De acordo com o
mencionado relatório do CNJ:
Há de se destacar, no entanto, que há casos em que o
Judiciário esgotou os meios previstos em lei e ainda assim não houve
localização de patrimônio capaz de satisfazer o crédito, permanecendo o
processo pendente. Ademais, as dívidas chegam ao Judiciário após esgotados os
meios de cobrança administrativos, por isso a difícil recuperação.
Em busca de uma maior efetividade da tutela executiva por
quantia certa, o artigo 835, I c/c §1º do CPC considera a penhora de
dinheiro em depósito ou aplicação financeira prioritária. Ao
regulamentar a penhora online, o artigo 854 permite
seja determinada a indisponibilidade dos ativos financeiros existentes em nome
do executado, sem a sua prévia ciência, por meio do Sistema de Busca de Ativos
do Poder Judiciário (Sisbajud) [5]. Ou seja, o valor depositado em nome do executado
torna-se indisponível sem prévia intimação, convolando-se em penhora
posteriormente, caso rejeitada ou não apresentada a manifestação do executado
sobre impenhorabilidade dos valores ou excesso do valor em indisponibilidade
(artigo 854, §§3º e 5º CPC).
O artigo 835, XIII, prevê, na última posição de
preferência, a penhora sobre "outros direitos", dentro dos quais uma
dessas hipóteses é a penhora sobre os créditos da titularidade do executado,
com a apreensão do documento (artigo 856 CPC) ou não (artigo 855 CPC).
Assim, é possível a penhora de crédito titularizado pelo
executado, mesmo quando o documento que materializa o crédito não tiver
sido apreendido, nos termos do artigo 855 do CPC. Em tal hipótese, considera-se
realizada a penhora com a dupla intimação: 1) intimação do terceiro (devedor do
executado) para que não pague ao executado, constituindo o terceiro devedor,
naquele momento, depositário do crédito; e 2) intimação do executado credor do
terceiro, a fim de que não pratique atos de disposição do seu crédito [6].
De acordo com o STJ [7], a penhora de crédito sem apreensão do título deve
indicar especificamente o crédito a que se refere, uma vez que impõe a
terceiro — o devedor do crédito — a obrigação de não pagar
ao seu credor, sob o risco de ser obrigado a adimpli-lo novamente, nos termos
do artigo 312 do Código Civil. Além disso, apesar de ser possível a
penhora sobre crédito futuro [8], para que seja válida, é preciso restar devidamente
especificada na decisão que defere a penhora e na intimação destinada ao
terceiro devedor a indicação, ao menos, da relação contratual no bojo da qual
surgirão os créditos penhorados. Sendo assim, se a decisão que deferiu a
penhora não incluiu expressamente os créditos futuros, não há que se falar em
penhora nos termos do artigo 855 do CPC.
É
possível penhora sobre milhas aéreas?
Diante da possibilidade de penhora sobre créditos do executado, surge a
pergunta: os pontos de milhas acumulados perante empresas aéreas podem ser
considerados objeto de penhora?
Esta possibilidade de penhora sobre crédito do devedor
ganhou visibilidade com o caso do ex-piloto de Fórmula 1, Emerson Fittipaldi [9]. Nos autos da Execução de Título Extrajudicial nº
1008249-02.2014.8.26.0011, o juízo da 3ª Vara Cível de São Paulo
autorizou a penhora de milhas áreas dos programas de fidelidade do ex-piloto
até o valor correspondente ao total do crédito devido (cerca de R$ 690 mil).
Em consulta ao andamento processual [10], verifica-se que antes de deferir a penhora, o juízo
determinou a intimação do exequente para 1) especificar os destinatários dos
ofícios, por considerar incabível o pedido genérico ("todas as companhias
aéreas do mundo"), e 2) apresentar planilha atualizada do crédito
executado, até a data do pedido, a fim de viabilizar a apreciação e
individualização do pedido de penhora.
Em seguida, foi deferida a penhora sobre o montante de
milhas em programas de fidelidade do executado, determinando-se a intimação das
empresas de acúmulo de milhas aéreas para que deixem de pagar ou de entregar ao
executado crédito em seu nome, nos termos do artigo 855, I, CPC. Veja-se:
"DEFIRO
A PENHORA SOBRE O MONTANTE DE MILHAS EM PROGRAMAS DE FIDELIDADE DO EXECUTADO,
até o alcance do valor correspondente ao total do crédito aqui perseguido (R$
691.618,51). Cuida-se de penhora sobre os direitos creditórios, nos termos do
artigo 855 do Código de Processo Civil, posto que sequer há certeza acerca
da existência dos valores a receber pela executada. Assim, EXPEÇA-SE OFÍCIO,
para que, nos termos do inciso I do artigo 855 do mesmo Código, as empresas:
SMILES FIDELIDADE S.A, LATAM Pass, TUDO AZUL COMERCIO LTDA, LIVELO S.A., ESFERA
FIDELIDADE S.A.,IUPP S.A., AMERICAN AIRLINES INC, Emirates Airline, Tap
Transporte Aereo Portugues, BANCO C6 S.A.,United Airlines, Inc.,AIR EUROPA
LINEAS AEREAS SOCIEDAD ANONIMA, AIR CANADA, IBERIA OPERADORA, SOCIETE AIR
FRANCE, AVIANCA, BRITISH AIRWAYS PLC., DELTA AIR LINES INC, DEUTSCHE LUFTHANSA
AG,KLM, AIR EUROPA, ITA Airways, TACA, Aeromexico, Turkish Airline, Sky
Airline, RYANAIR, SWISS, easyJet, QATAR AIRWAYS, Vueling, AIR CHINA. DEIXEM DE
PAGAR ou ENTREGAR ao executado crédito que a ele venha caber, de acordo com o
quanto aqui estabelecido. Servirá a presente, por cópia, como OFÍCIO, cabendo
ao exequente seu encaminhamento e comprovação de entrega, no prazo de 30 dias.
O exequente DEVE PROVIDENCIAR o necessário para viabilizar a intimação do
executado, a fim de que este, nos termos do inc. II do artigo 855 do
Código de Processo Civil, DEIXE DE PRATICAR ATO DE DISPOSIÇÃO dos referidos
direitos."
Apesar da notoriedade, não se trata do primeiro caso sobre
a penhorabilidade de milhas aéreas. Para verificar seu cabimento, é preciso
definir se os pontos ou milhagens possuem natureza patrimonial e valor
monetário, bem como se há possibilidade de alienação. Não há consenso nos
tribunais sobre a questão.
O TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal), em
diversos acórdãos, reconheceu a natureza econômica das milhas, mas
rejeitou o pedido de penhora por considerar o caráter pessoal e intransferível
da pontuação, impossibilitando a penhora ou comercialização para terceiros.
Além disso, considerou não haver mecanismos seguros e idôneos que permitam sua
conversão em dinheiro [11].
A 11ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, por seu turno,
deu provimento a Agravo de Instrumento nº
2160958-57.2022.8.26.0000 para determinar a penhora sobre milhas aéreas.
Inicialmente, reconheceu o caráter econômico e patrimonial dos pontos
acumulados, "na medida em que podem ser trocados por produtos, serviços
e/ou benefícios, com conhecido valor de mercado, ou ao menos
identificável".
Em seguida, o TJ-SP rechaçou o argumento da
inalienabilidade e impossibilidade de conversão em dinheiro, ao ressaltar
existirem empresas especializadas que comercializam milhas, além de que as
próprias companhias administradoras dos programas admitirem a aquisição e
transferência das milhas. Por fim, ressaltou precedente do próprio tribunal que
considera abusiva a cláusula de inalienabilidade inserida em programa de
milhagens [12].
De fato, ao que parece, o acúmulo de milhas aéreas não
constitui ato de mera liberalidade concedida pelas empresas aéreas aos seus
clientes. Os pontos gerados possuem verdadeira conotação financeira, com a
possibilidade de compra de pontos e troca por produtos e serviços, razão pela qual
se considera, ao menos discutível, a cláusula de inalienabilidade.
Entretanto, é preciso pontuar a dificuldade para a
operacionalização propriamente dita da penhora sobre tais créditos [13]. Com a intimação das empresas (terceiros devedores
do executado), nos termos do artigo 855, I, do CPC, qual o próximo passo? Qual
o meio mais eficaz para esta intimação? Deve através de expedição de Ofício às
empresas? Há possibilidade de indisponibilidade online, como ocorre com os
ativos financeiros? Como ocorrerá a alienação judicial dos pontos
acumulados? Há a possibilidade de as próprias companhias converterem em moeda
corrente o valor das milhas?
Acredita-se que a discussão sobre a possibilidade de
penhora sobre milhas aéreas ganhará fôlego após o caso notório do ex-piloto de
Fórmula 1. Uma vez reconhecida a validade de tal tipo penhora, amplia-se o
espectro de bens aptos a concretizar o princípio da efetividade no processo de
execução. Por esta razão, é preciso organizar o Poder Judiciário, com a criação
de fluxos e sistemas informatizados, a fim de viabilizar, na prática, esta
espécie de penhora sobre crédito do executado, nos termos do artigo 855 do CPC.
[1] No Projeto de Florença, trabalho ícone sobre o
assunto, Mauro Cappelletti e Bryant Garth estudaram os obstáculos mais comuns
que poderiam impedir ou dificultar o acesso à justiça. Identificados os óbices,
foram sugeridas alternativas, as conhecidas "ondas renovatórias do
processo". Apesar da dificuldade em definir o significado da
expressão "acesso à justiça", os obstáculos encontrados para o acesso
foram agrupados nas seguintes modalidades: custas judiciais; possibilidade das
partes (características dos litigantes e repercussões no processo); problemas especiais
dos interesses difusos. O fator complicador consiste em que as barreiras ao
acesso são inter-relacionadas, de maneira que a superação de uma barreira pode
exacerbar outra, razão pela qual se mostram necessários alguns fatores de
compensação. (CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad.
Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.
Reimpresso 2002, p. 8, 68-77).
[2] BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo
qualificado: o processo civil na perspectiva do Estado Constitucional.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[3] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf <acesso em 05 abr. 2023>
[4] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf <acesso em 05 abr. 2023>
[5] A penhora online desenvolve-se por sistema
eletrônico gerido pelo Banco Central e é regulamentada pela Resolução n.
61/2008 do CNJ.
[6] DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito
processual civil: execução. Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da
Cunha, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira. 7. ed. rev.,
ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivum, 2017, p. 885-886.
[7] REsp nº 1.964.457/RJ, relator ministro Paulo
de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 3/5/2022, DJe de 11/5/2022.
[8] Importante lembrar que os bens presentes e futuros
do devedor podem ser alcançados pela execução, nos termos do artigo 789 CPC.
[9] https://www.migalhas.com.br/quentes/384196/fittipaldi-tem-milhas-areas-penhoradas-para-pagamento-de-divida acesso em 05 abril 2023
[10] https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=0b00132le0000&processo.foro=11&processo.numero=1008249-02.2014.8.26.0011
[11] A título exemplificativo, conferir: Acórdão
1373921, 07235594120218070000, relator: JOÃO EGMONT, 2ª Turma Cível, data
de julgamento: 22/9/2021, publicado no DJE: 6/10/2021. Pág.: Sem Página
Cadastrada; Acórdão 1393448, 07297449520218070000, Relator: ANA MARIA
FERREIRA DA SILVA, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 9/12/2021, publicado no
DJE: 4/2/2022. Pág.: Sem Página Cadastrada; Acórdão 1388951,
07307287920218070000, Relator: CARMEN BITTENCOURT, 1ª Turma Cível, data de
julgamento: 24/11/2021, publicado no DJE: 15/12/2021. Pág.: Sem Página
Cadastrada; Acórdão 1647820, 07268467520228070000, Relator: TEÓFILO CAETANO, 1ª
Turma Cível, data de julgamento: 30/11/2022, publicado no DJE: 23/1/2023.
Pág.: Sem Página Cadastrada.
[12] AGRAVO DE INSTRUMENTO — Cumprimento de
sentença decisão que indeferiu o pedido de expedição de ofício à companhia
aérea para fins de penhora de milhas aéreas Irresignação do exequente
Acolhimento Pontos de programas de fidelidade que ostentam natureza patrimonial
e valor monetário, e podem ser comercializadas em empresas especializadas no
ramo Possibilidade de penhora Recurso provido. (Agravo de Instrumento nº
2160958-57.2022.8.26.0000, Relator MARCO FÁBIO MORSELLO).
[13] https://www.migalhas.com.br/depeso/369715/penhora-de-milhas-aereas Acesso em 11 abril 2023.
Fonte: Conjur