No
caminho da desjudicialização que estamos trilhando no Brasil, buscando dar
efetividade às demandas da Sociedade, deixando para o Judiciário apenas o que
realmente precisa de pronunciamento judicial, a lei 14.382, de 27 de junho de
2022, fruto da conversão da Medida Provisória nº 1.085/21, inseriu o art. 216-B
na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73), trazendo a possibilidade da
adjudicação compulsória extrajudicial, que é requerida, processada e deferida
perante o Cartório de Registro de Imóveis, similarmente ao que hoje já acontece
com a usucapião extrajudicial.
Apesar do
brilhantismo da lei 14.382/22 ao trazer mais uma possibilidade de resolução
célere e eficaz perante os Cartórios, o artigo 216-B foi econômico ao prever a
adjudicação compulsória extrajudicial, gerando uma série de discussões
envolvendo o instituto.
E um
importante ponto de debate é onde o procedimento de adjudicação compulsória
deve começar: no Registro de Imóveis ou no Tabelionato de Notas? A parte deve
ir primeiro no Tabelionato de Notas, para lavrar a ata notarial, que é
requisito obrigatório previsto no inciso III, do §1º, do artigo 216-B, e então
protocolar o requerimento de adjudicação no Registro de Imóveis devidamente
instruído com o respectivo ato notarial? Ou, o procedimento deve começar no
Registro Imóveis, com a prévia notificação de quem deve outorgar ou receber o
título de propriedade para a efetiva prova e caracterização do inadimplemento?
A questão
proposta tem vinculação e passa pela análise dos requisitos da adjudicação
compulsória extrajudicial previstos nos incisos II e III, do §1º, do artigo
216-B, que para melhor didática e compreensão do leitor, transcrevemos a
seguir:
§ 1º São
legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos
seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o
promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser
instruído com os seguintes documentos;
(...)
II -
prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de
transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da
entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da
situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de
títulos e documentos;
III - ata
notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do
imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores
constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e
da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o
título de propriedade;
Com
efeito, o inciso III, do §1º, do artigo 216-B, prevê que ata notarial feita
perante o Tabelião de Notas deve conter a prova do pagamento do preço e da
caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título
de propriedade. Já o inciso II prevê que a prova efetiva do inadimplemento é
caracterizada pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena
no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial
pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a
diligência ao oficial do registro de títulos e documentos.
Tanto o
inciso II, quanto o inciso III, tratam da premissa fundamental da adjudicação
compulsória: o inadimplemento daquele que deve outorgar ou receber a escritura
pública. E esta premissa está intimamente ligada à questão que vamos enfrentar:
o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial começa no Tabelionato
de Notas, com a lavratura da ata notarial, ou começa no Registro Imóveis, com a
prévia notificação de quem deve outorgar ou receber o título de propriedade
para a efetiva prova do inadimplemento?
Tal
discussão, de onde deve iniciar o procedimento, está ancorada em dois pontos
centrais: a (im)prescindibilidade da notificação extrajudicial para
caracterização do inadimplemento de outorgar ou receber o título de propriedade
na ata notarial e no custo deste ato notarial para o procedimento de
adjudicação compulsória extrajudicial.
Vamos ao
primeiro. Para caracterizar o inadimplemento na ata notarial, é necessária a
notificação extrajudicial daquele que tem a obrigação de outorgar ou receber o
título de propriedade ou caberiam outros meios de prova? Se feita previamente
tal notificação através do Registro de Título e Documentos, antes de iniciado o
procedimento perante o Ofício Imobiliário, é necessária nova notificação feita
pelo Registrador de Imóveis, diante do texto do inciso II, que prevê que é ele
quem detém competência, seja por si ou delegada ao RTD, para notificar e
efetuar a prova do inadimplemento?
O Rio
Grande do Sul, entendendo que a notificação extrajudicial para a prova do
inadimplemento precisa ser feita pelo Ofício Imobiliário ou delegada por ele ao
RTD, em observância aos princípios do devido processo legal e do contraditório,
e entendendo que a notificação é imprescindível para caracterizar o
inadimplemento na ata notarial, emitiu Nota conjunta da Diretoria nº 01/2023,
envolvendo a Associação dos Notários e Registradores do Rio Grande do Sul
(ANOREG/RS), o Colégio Registral do Rio Grande do Sul, o Instituto de Registro
Imobiliário do Rio Grande do Sul (IRIRGS) e o Colégio Notarial do Brasil -
Seção Rio Grande do Sul, sugerindo aos associados que o procedimento de
adjudicação compulsória extrajudicial inicie no Registro de Imóveis com o
protocolo e a autuação do respectivo requerimento (petição inicial), contendo o
pedido de notificação extrajudicial a ser dirigida a quem deve outorgar a
escritura pública ou recebê-la, para que assim o faça, bem como em qual
tabelionato o notificado deverá comparecer em caso de concordância com o
pedido.
De acordo
com a Nota, não havendo manifestação do notificado, o Oficial do Registro de
Imóveis certificará que ficou caracterizado o inadimplemento e, de posse desta
certidão, poderá o promitente vendedor ou comprador solicitar ao Tabelião a
lavratura da ata notarial para dar prosseguimento ao rito do procedimento. De
outro lado, diz a Nota, caso o notificado expressamente concorde com o pedido,
caberá ao Registrador conceder o prazo de 15 (quinze) dias úteis para a
lavratura da escritura pública de efetivação da promessa de compra e venda com
a transmissão da propriedade plena do imóvel, podendo ser prorrogado o prazo
mediante pedido justificado dos interessados, suspendendo-se o procedimento e a
sua prenotação até a conclusão das formalidades legais e da apresentação no
protocolo da referida escritura pública.
Percebam
um detalhe importante: no Rio Grande do Sul, o procedimento de adjudicação compulsória
extrajudicial só prossegue havendo silêncio do notificado. Se, de outro lado, a
resposta à notificação for a concordância daquele que tem a obrigação de
outorgar ou receber o título de propriedade, o caminho será a escritura pública
de compra e venda e o encerramento do procedimento de adjudicação compulsória.
Já em São
Paulo, no Rio de Janeiro, no Amazonas e, mais recentemente, no Rio Grande do
Norte, a concordância expressa do notificado implica na continuidade do
procedimento de adjudicação compulsória. Nestes Estados, o silêncio importa em
anuência tácita[1], enquanto a "concordância" importa em anuência
expressa do notificado com o pedido de adjudicação compulsória. Vejamos, à
título de exemplo, o que diz o Código de Normas do Rio de Janeiro:
Art.
1263. A notificação dos requeridos poderá ser feita pessoalmente pelo oficial
de registro de imóveis ou por escrevente habilitado.
(...)
§ 5º. O
consentimento expresso poderá ser manifestado pelos titulares de direitos reais
a qualquer momento, por documento particular com firma reconhecida ou por
instrumento público, sendo para isso prescindível a assistência de advogado.
§ 6º. A
concordância poderá ser manifestada ao escrevente encarregado da intimação,
mediante assinatura de certidão específica de concordância que lavrará no ato.
Deixando
para outro momento a discussão que envolve qual caminho é mais adequado após a
concordância do notificado, se é a escritura pública de compra e venda e ou a
continuidade do procedimento de adjudicação, o fato é que no Rio de Janeiro, em
São Paulo, no Amazonas e no Rio Grande do Norte, a ata notarial pode ser feita
em primeiro lugar, iniciando a adjudicação no Tabelionato de Notas, sem que
isto ocasione qualquer prejuízo econômico para a parte. Adentramos aqui,
portanto, no segundo ponto: o custo da ata notarial para o procedimento de
adjudicação compulsória.
Assumindo
que ata notarial de adjudicação compulsória tem conteúdo econômico, o que
defendemos, o receio de muitos é que, uma vez feita a ata notarial antes de
protocolado o requerimento no Registro de Imóveis e havendo concordância do
requerido após sua notificação pelo Ofício Imobiliário, o requerente seria
onerado duplamente, com a ata notarial e com a escritura pública de compra e
venda.
Contudo,
no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Amazonas e no Rio Grande do Norte, o custo
com a ata notarial não implicará em novo custo com a escritura pública de
compra e venda, pois, conforme já dito, nestes Estados, a concordância do
notificado implica na continuidade do procedimento de adjudicação e não na sua
remessa para a via ordinária do artigo 108 do Código Civil.
Neste
sentido, aliás, o Rio Grande do Norte, no novíssimo Provimento 243, de 31 de
maio de 2023, foi taxativo ao prever que a ata deve ser feita antes de iniciado
o Procedimento no Registro de Imóveis, em dois artigos, a saber:
Art. 502.
(...) III - ata notarial previamente lavrada por tabelião de notas de livre
arbítrio da parte interessada, quando tratar-se de constatação da mera
documentação, sem necessidade de deslocamento até o local do imóvel; e,
Art. 507.
O pedido da adjudicação compulsória será indeferido pelo oficial de registro de
imóveis quando: I - ausência da ata notarial, que deverá ser lavrada por
tabelião de notas antes da protocolização do requerimento perante o registrador
de imóveis competente.
Iniciado
o procedimento no Tabelionato de Notas, com a ata notarial, remanesce ainda uma
questão: como caracterizar o inadimplemento sem a prévia notificação
extrajudicial?
Ao
encontro do que defendeu a Professora Letícia Faria, em palestra sobre o tema,
entendemos que o legislador, ao utilizar as palavras "prova" no
inciso II e "caracterização" no inciso III, quis diferenciar os dois
momentos. E a notificação extrajudicial foi exigida para a "prova" do
inadimplemento, mas não para sua "caracterização" na ata notarial.
Assim,
entendemos que a caracterização do inadimplemento na ata notarial não requer
obrigatoriamente a notificação extrajudicial, podendo ser feita de inúmeras
outras formas, valendo-se da essencial fé pública do tabelião. Entendemos que é
possível comprovar as tentativas que o requerente fez de obter a escritura
através da transcrição na ata notarial das mensagens trocadas entre as partes,
de e-mails, de carta AR. Além disto, o tabelião pode ele mesmo tentar ligar
para o requerido, orientando-o quanto à necessidade da escritura e das
consequências de sua não realização, dando de tudo fé na ata.
Vejam, o
papel do tabelião na adjudicação compulsória extrajudicial é crucial. Como
assessor imparcial das partes, ele tem influência importante no desfecho e na
segurança do procedimento, atestando o real óbice à correta escrituração da
transmissão da propriedade e evitando que a via administrativa da adjudicação
compulsória se torne causa para burlar o direito civil, notarial e registral e
tributário. E, para isto, definitivamente, a notificação extrajudicial não é
imprescindível.
De
qualquer sorte, é importante deixar claro que, se acaso feita a prévia
notificação extrajudicial pelo Registro de Títulos e Documentos para a
caracterização do inadimplemento na ata notarial, antes de iniciado o
procedimento no Registro Imobiliário, não poderá ser dispensada a notificação
feita pelo Oficial de Imóveis, por si ou através de delegação ao RTD, por
expressa previsão legal do artigo 216-B e em atendimento aos princípios do
devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Em
conclusão à questão objeto deste artigo, podemos dizer que o local onde o
procedimento de adjudicação compulsória deve começar, se no Tabelionato de
Notas ou no Registro de Imóveis, dependerá do tratamento que os Estados e o
CNJ[2] derem à resposta à notificação prevista no inciso II, do §1º, do artigo
216-B: se na concordância expressa do requerido, o procedimento de adjudicação
compulsória perante o Registrador Imobiliário continuar seu curso até decisão
final do Oficial (deferimento ou indeferimento), a ata notarial pode ser feita
previamente, sem qualquer onerosidade adicional ao requerente; de outro lado, se
a concordância do requerido levar à forma tradicional de transmissão da
propriedade, à escritura pública de compra e venda, no caminho que o Rio Grande
do Sul sugeriu, de fato, nos parece mais adequado que o procedimento inicie no
Registro de Imóveis.
É importante
dizer, contudo, que a escolha de qual caminho seguir, a menos até que seja
publicada norma estadual (Corregedorias) ou federal (CNJ) em sentido contrário,
é da parte e de seu advogado. Com exceção do Rio Grande do Norte, que foi
taxativo ao dizer que o procedimento deve iniciar com a ata, os outros Estados
ficaram silentes em relação à esta questão. Nada impede, portanto, que, mesmo
no Rio Grande do Sul, tendo em vista a Nota Conjunta ser apenas uma sugestão, o
requerente inicie com a ata notarial, assumindo os riscos disto decorrentes.
__________
[1]
Provimento 243/23 da CGJ do Rio Grande do Norte. Art. 505. Caso o requerido
compareça ao cartório, a notificação poderá ser feita pessoalmente pelo oficial
de registro de imóveis ou preposto.
(...)
§4º. Na notificação deverá constar expressamente a informação de que o
transcurso do prazo de 15 (quinze) dias úteis, sem manifestação do titular do
direito sobre o imóvel, implicará em anuência presumida ao pedido de
reconhecimento extrajudicial da adjudicação compulsória.
[2] Até a
data da elaboração deste artigo, o CNJ não havia publicado Provimento relativo
à adjudicação compulsória extrajudicial.
Fonte: Migalhas