A fé pública notarial
consiste, de forma bem sintética, na presunção de veracidade e autenticidade
dos atos do Notário.
1. DA FÉ PÚBLICA NOTARIAL E AS
SUAS CONSEQUÊNCIAS
Com efeito, a fé pública
notarial consiste, de forma bem sintética, na presunção de veracidade e
autenticidade dos atos do Notário. Por essa razão, presumem-se verdadeiros,
fazendo prova plena, os atos praticados pelo Tabelião de Notas. Ressalvando
apenas dizer que a presunção que se estabelece para esses atos é a relativa ou
iuris tantum, e.g., até que seja desconstituída por meio de declaração judicial
de falsidade, vide art. 427, do Código de Processo Civil.
Entretanto, toda essa confiança
depositada no Tabelião vem acompanhada de uma responsabilidade em idêntica
proporção - basta verificarmos o que dispõe a lei 8.935, Capítulo III, Da
Responsabilidade Civil e Criminal, arts. 22 a 24 - e de uma fiscalização diuturna,
não só pelo Poder Judiciário (Capítulo VII, arts. 37 e 38, da lei 8.935/94),
bem como por outros entes públicos fazendários.
A fundamentação legal da fé
pública notarial se encontra no art. 236 da Constituição da República de 1988,
regulamentado pela lei 8.935/94, no art. 3º, e no art. 215, do Código Civil
brasileiro. O Estado delegou a esses profissionais a responsabilidade pela
prática de determinados atos, mandatórios em certas situações e, por vezes, por
mera vontade das partes.
Nesse sentido, como exemplo de
obrigatoriedade da forma pública, temos a escritura de compra e venda de imóvel
com valor superior a 30 salários mínimos, o mandato para alienação de bem
imóvel, o pacto antenupcial (arts. 108, 657, 1.653, todos do Código Civil).
Por sua vez, o art. 406, do
Código de Processo Civil, determina que: "Quando a lei exigir o
instrumento público como da substância do ato, nenhuma outra prova, por mais
especial que seja, pode suprir-lhe a falta."
Não obstante, a lei por vezes
determinar a forma pública como mandatória, em razão da importância que o
legislador conferiu a determinados atos, as partes também podem optar pela
forma pública por mera vontade, nessa hipótese, em razão da importância que a
elas conferem àquele documento.
Senão, vejamos o que determina
o inciso II, do art. 6º, da lei 8.935/94:
"Art. 6º - Aos notários
compete:
I - formalizar juridicamente a
vontade das partes;
II - intervir nos atos e
negócios jurídicos a que as partes DEVAM ou QUEIRAM dar forma legal ou
autenticidade, autorizando a redação ou REDIGINDO OS DOCUMENTOS ADEQUADOS,
conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo"
(GRIFO NOSSO)
Nesse contexto, eis aqui uma
indagação de alta complexidade: o que seria redigir os documentos adequados?
Quais os limites da intervenção
do tabelião na manifestação de vontade das partes?
Conforme veremos adiante, o
Tabelião poderá lavrar negócios jurídicos anuláveis e ineficazes. No entanto,
veremos que a linha divisória que separa a livre manifestação de vontade das
partes e a afronta ao ordenamento jurídico, por vezes, é muito tênue.
E, por sua vez, os Tabeliães
são aqueles profissionais que o Estado delegou essa função de formalizar
juridicamente a vontade das partes, jungindo-os à fé pública e os incumbindo de
garantir a segurança jurídica e, consequentemente, a paz social.
De que forma conciliar a
liberdade conferida pela autonomia privada e a obrigação dos notários para
garantir a segurança jurídica?
2. DA AUTONOMIA DA VONTADE À
AUTONOMIA PRIVADA
Sem querer me alongar sobre
esse tópico, que não é o ponto principal deste texto, no entanto, faz-se
necessária uma breve explicação sobre o que difere a autonomia da vontade da
autonomia privada.
A autonomia da vontade é um
princípio fundamentado nas bases da sociedade liberal dos séculos XVIII e XIX
(laissez faire laissez passer le monde va de lui-même), caracterizada por uma
ideologia individualista, sem limites, em que o homem tinha plena liberdade
contratual.
Já o princípio da autonomia
privada estabelece que o poder de se autorregular está limitado pelo
ordenamento jurídico, devendo a relação contratual promover os interesses que
sejam úteis à sociedade em geral.
Entende-se por ordenamento
jurídico o conjunto de normas e princípios, dotado de unidade, coerência e
completude. Isso implica dizer que a manifestação de vontade deverá estar
de acordo com as normas e os princípios do direito.
Nesse diapasão, a relação
contratual deverá coadunar-se com o princípio da boa-fé objetiva (arts. 113,
187 e 422, do Código Civil) e os seus deveres anexos, quais sejam, o dever de
proteção, informação e cooperação, sendo certo, ainda, que a inobservância
desses deveres laterais poderá conduzir à resolução do contrato em decorrência
da sua violação positiva.
Ao lado do princípio da boa-fé
objetiva, temos que a relação contratual deverá promover a circulação de bens e
direitos entre os indivíduos de uma sociedade, gerando o fluxo de riquezas e do
bem-estar comum, portanto, de acordo com o art. 421, da lei substantiva, o
contrato deverá cumprir a sua função social, in verbis: "A liberdade de
contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato."
E, por derradeiro, deverá ser
observado o princípio da justiça contratual, segundo o qual as partes devem
suportar direitos e deveres equilibrados, não devendo nenhuma das partes
assumir obrigações excessivas.
3. DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES
DO CÓDIGO CIVIL
Além das normas e dos
princípios que regem a relação contratual, a manifestação de vontade deverá
adequar-se aos princípios que nortearam a elaboração e que fundamentam o nosso
Código Civil são: o da socialidade, da operabilidade e da eticidade.
O princípio da socialidade
estabelece que os valores coletivos devem se sobrepor aos valores individuais;
o princípio da operabilidade ou da concretude permite ao julgador o poder de
modular a lei a aplicá-la como julgar necessário; o princípio da eticidade
determina que nós ajamos de forma correta e ética, seguindo o conceito
filosófico desenvolvido pelo filósofo Immanuel Kant, segundo o qual, o
indivíduo deveria agir de forma que a sua conduta pudesse transformar-se em uma
lei universal, i.e., agir de forma que todos devessem agir, independentemente
de punição ou vantagem.
4. DIREITOS DISPONÍVEIS E
INDISPONÍVEIS
Por direitos disponíveis, temos
aqueles direitos patrimoniais que as partes podem livremente dispor, sem que
haja norma de caráter cogente, visando resguardar os interesses da
coletividade, v.g., direitos que tenham valor econômico e que possam ser comercializados
ou transacionados livremente por seus titulares.
Já os direitos indisponíveis
são aqueles direitos que as partes não podem dispor, transacionar ou renunciar,
como, por exemplo, direito à vida, à saúde, à liberdade, entre tantos outros.
5. DA POSSIBILIDADE DE
LAVRATURA DE INSTRUMENTO PÚBLICO PARA NEGÓCIOS JURÍDICOS ANULÁVEIS
Em primeiro lugar, temos que
diferenciar os vícios do consentimento e sociais, dos vícios que derivam da
vontade viciada.
A nossa legislação civil
enumera os vícios do consentimento como o erro, o dolo, a coação, o estado de
perigo e a lesão e os vícios sociais, fraude contra credores e simulação (no
caso da simulação, esta acarreta a nulidade do ato, art. 167, do Código Civil).
Ressalte-se que a anulabilidade
precisa ser reconhecida pelo juiz e deverá ser provocada pela parte
interessada.
Esses vícios do consentimento e
sociais, em tese, impedem que o Tabelião pratique aquele ato. No entanto, o
Tabelião não tem conhecimento daquele vício, no momento da lavratura do
instrumento, pois caso já tivesse ciência daquele fato, certamente, não haveria
praticado o ato notarial, e.g., coação.
Em contrapartida, existe a
vontade viciada, ou seja, o ato não está perfeito, padece de um vício, um vício
não tão grave, que, decorrido o lapso temporal previsto na lei, este ato
convalesce.
Na hipótese acima, tanto as
partes como o Tabelião já têm prévia ciência de que aquele ato poderá ser
anulado, no entanto, a sua prática não é vedada.
Atualmente, essa
matéria se encontra positivada no art. 329, do novo Código de Normas da CGJ/RJ,
e, de acordo com a mencionada norma administrativa fluminense, o ato poderá ser
lavrado, desde que conste de forma inequívoca a ciência e anuência das partes
em relação a eventual risco de anulação daquele negócio jurídico.
Como exemplo, podemos trazer a
hipótese prevista no art. 496, do Código Civil brasileiro, venda de ascendente
para descendente. Nesse caso, é necessário o consentimento dos demais
descendentes e do cônjuge do vendedor.
No entanto, caso não haja o
mencionado consentimento, a escritura poderá ser lavrada e decorrido o prazo
decadencial de dois anos, a contar da data da celebração do ato, o ato
convalescerá.
Nesse caso, não se aplicam as
Súmulas nº 152 e 494 do Supremo Tribunal Federal, posto que foram editadas
quando da vigência do Código Civil de 1916, que previa, no seu art. 1.132, a
vedação expressa da venda de ascendente para descendente.
No presente momento, esse prazo
é de dois anos, com a aplicação do art. 179, igualmente, do Código Civil. Ver
Resp. 1.679.501/GO, 3ª Turma STJ, relatora Ministra Nancy Andrighi. A
mencionada ministra assevera inclusive que o contrato não deverá ser anulado,
se comprovado que o negócio foi efetivado de forma regular, invocando, também,
o princípio da conservação dos contratos (ver também o Enunciado nº 368, da IV
Jornada de Direito Civil).
Outro exemplo, o
condômino-vendedor que não concedeu o direito de preferência ao outro
condômino, conforme disposição contida no art. 504, igualmente, do Código
Civil, poderá ter o seu negócio anulado no prazo de 180 dias.
Mais um exemplo, o locador
vende o imóvel sem conceder o direito de preferência ao locatário (arts. 27, 28
e 33, da lei 8.245/91), nessa hipótese, deverá o locatário, no prazo de 30
dias, manifestar o seu interesse na compra do imóvel, caso contrário, o seu
direito caducará.
Caso não tenha sido dada a
preferência ao locatário, este poderá reclamar perdas e danos e, na hipótese de
pretender adjudicar o imóvel para si, o seu contrato deverá ter sido averbado
no registro imobiliário competente, pelo menos, 30 dias antes da alienação.
Nessa situação, o locatário terá o prazo de seis meses para exercer o seu
direito de adjudicar o bem imóvel (vide item 16, inciso II, do art. 167, da lei
6.015/73).
Por fim, vamos citar o art.
550, que trata da doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice. O prazo para
anular esse ato será de dois anos, a contar da dissolução da sociedade
conjugal.
6. DA POSSIBILIDADE DE
LAVRATURA DE NEGÓCIOS JURÍDICOS INEFICAZES
A questão da lavratura de
instrumentos públicos ineficazes - atos que estão condicionados a um evento
futuro e incerto ou a um termo - é extremamente comum no dia a dia da atividade
notarial, apesar de o artigo 1º, da lei 8.935/94, determinar que a atividade
notarial se destina a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a
eficácia dos atos jurídicos.
São inúmeros os exemplos de
atos notariais ineficazes, e.g., o testamento, o pacto antenupcial, a venda de
bem penhorado, a cessão de direitos hereditários, até a homologação da
partilha, a declaração de autocuratela, entre tantos outros.
Assinale-se que a escritura
pública é um ato praticado perante o Tabelião, que contém a manifestação de
vontade das partes em realizar um negócio jurídico ou declarar uma situação
juridicamente relevante. Para que se possa lavrar uma escritura há que se
atentar aos requisitos de existência e validade, previstos no art. 104, do
nosso Código Civil.
Quanto à eficácia, o ato poderá
ou não produzir efeitos.
Resumindo, o ato existe, é
válido, porém, pode ser ou não eficaz. Nesse sentido, recordemos a escada
Ponteana de Hans Kelsen e difundida no Brasil pelo ilustre jurista Pontes de
Miranda, em que cada plano de formação do negócio jurídico é representado por
um degrau.
Aliás, o ato poderá ser
ineficaz nesse momento e não mais sê-lo em um futuro próximo.
7. DA AUTONOMIA PRIVADA E AS
SUAS LIMITAÇÕES
Enfim, tecidas essas
considerações preliminares, chegamos ao cerne desse trabalho, que seria
responder à indagação de qual seria o limite do Tabelião ao redigir um negócio
jurídico ou uma declaração juridicamente relevante. O que significa redigir os
documentos adequados? Qual o limite da manifestação de vontade das partes em um
negócio jurídico?
Para responder a essas
indagações, a fim de verificarmos se a manifestação de vontade das partes é
consentânea com o nosso ordenamento jurídico, há que se verificar se aquela
manifestação não colide ou extrapola os preceitos demarcadores abaixo enumerados,
que são:
I. não afronta o
ordenamento jurídico nacional (no direito privado, tudo que não é proibido é
permiti
II. não ofende a
moral e os bons costumes (art. 17, decreto-lei 4.657/1942, princípio da
eticidade);
III. trata-se de
direito patrimonial disponível;
V. partes maiores
e capazes.
Para ilustrar melhor esse
dilema e com isso ficar mais palatável a compreensão, seguem alguns exemplos:
I. admite-se
lavrar escritura de união estável ou pacto antenupcial ou escritura
declaratória de renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial?
II. admite-se
lavrar escritura de renúncia antecipada a alimentos compensatórios?
III. admite-se
lavrar escritura de união estável ou pacto antenupcial, objetivando a não aplicação
dos efeitos da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal?
V. admite-se hoje
lavrar escritura de união estável, prevendo o regime da separação convencional
e absoluta de bens, retroativa à data do início da relação afeti
V. admite-se
lavrar escritura de diretiva antecipada da vontade (testamento vital) em que a
parte manifesta a sua vontade de não querer ter o seu sangue transfundido em
razão de convicção religiosa ou de optar pelo suicídio assistido ou pela
eutanásia?
VI. admite-se
lavrar escritura de autocuratela?
Em relação à pergunta constante
no número "I", no sentido de ser ou não possível a lavratura de
escritura de união estável ou de pacto antenupcial ou de escritura
declaratória, que conste a renúncia antecipada ao direito sucessório
concorrencial, haja vista a vedação genérica, prevista nos arts. 426 e 1.655,
ambos do Código Civil, de certa forma, extremamente abrangentes, vedam essa
espécie de cláusula, entendo que a resposta é afirmativa, de forma que os
notários podem lavrar escrituras contendo essa cláusula de renúncia antecipada
ao direito sucessório concorrencial.
Apesar de ser um tema altamente
controvertido, aqui, no Estado do Rio de Janeiro, os Notários já podem lavrar,
sem receio, esses documentos públicos que prevejam cláusula de renúncia
antecipada ao direito sucessório concorrencial, por força do disposto no §3º,
do art. 390, do novo Código de Normas da Corregedoria do Rio de Janeiro, que
expressamente permite a lavratura desses atos, desde que as partes sejam
advertidas quanto à sua controvertida eficácia.
Ressalte-se, igualmente, que o
regime concorrencial pode ser entre o cônjuge/companheiro e os descendentes
(inciso I, do art. 1.829, do Código Civil); e o cônjuge/companheiro e os
ascendentes, nessa hipótese, a concorrência sucessória independerá do regime de
bens (art. 1.836, do Código Civil).
Outra questão instigante a ser
enfrentada, aquela constante no número II, é se há possibilidade de se
renunciar previamente aos alimentos compensatórios.
Por alimentos compensatórios
entende-se aqueles que têm natureza indenizatória e que têm como escopo
minimizar o desequilíbrio econômico entre os cônjuges e companheiros, no
momento da ruptura da relação, seja pelo divórcio, seja pela dissolução da
união estável, causando a diminuição do padrão de vida que o casal desfrutava
antes do rompimento do vínculo afetivo.
Destarte, entendo que, quando
se tratar de alimentos compensatórios, ser possível o pacto dessa cláusula no
sentido de se renunciar antecipadamente, quando do término da relação afetiva,
alertando, igualmente, as partes que os efeitos dessa manifestação de vontade
poderão ser rejeitados ou mitigados por força de decisão judicial.
No tocante à possibilidade de
se prever a inaplicabilidade dos efeitos da Súmula nº 377, do STF, constante no
número III, quando o regime para a união estável ou para o casamento for o da
separação obrigatória de bens, o Código de Normas da CGJ/RJ prevê, no inciso
II, do art. 391, essa possibilidade, prevendo, inclusive, a opção pelo regime
da separação absoluta e convencional de bens.
Todavia, nesse caso, temos que
estar atentos a duas situações:
I. a previsão na cláusula para
que se mantenha o regime da separação obrigatória e legal de bens, posto que,
pelo regime da separação absoluta e convencional de bens, o cônjuge e o
companheiro herdarão concorrentemente com os descendentes, vide inciso I, do
art. 1.829, do Código Civil; e
II. no caso de casamento,
quando se trata do regime da separação obrigatória e legal de bens, não há necessidade
de lavratura de pacto antenupcial, porém, quando se pretende, por meio de
vontade das partes, a não aplicação dos efeitos da Súmula nº 377, do Supremo
Tribunal Federal, far-se-á necessária a lavratura de pacto antenupcial. A
propósito, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, por
força do Provimento nº 08/2016, no seu art. 664-A, já previa essa necessidade
da lavratura do pacto antenupcial diante dessa situação.
Outra celeuma jurídica
existente, constante do número IV, no tocante à matéria sobre a união estável,
é saber se se poderia alterar o regime de bens livremente, inclusive com data
retroativa.
Recentemente, a 3ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça, Resp. 1.845.416 - MS, sendo relator o Ministro
Marco Aurélio Bellize, decidiu que a alteração do regime de bens na união
estável deverá ser sempre ex nunc.
Conquanto eu sempre tivesse
discordado dessa posição jurisprudencial, o fato é que essa jurisprudência se
tornou a dominante.
Mais uma vez, o Poder
Judiciário do Estado do Rio de Janeiro previu no Provimento CGJ/RJ 87/222 (novo
Código de Normas), no seu §1º, do art. 390, que as partes poderão optar pelo
regime da separação convencional e absoluta de bens, com data retroativa ao
início da relação afetiva, no entanto, as aludidas partes deverão ser
advertidas pelo Tabelião que a mencionada cláusula poderá ser anulada (sic.
ineficaz).
Em relação à escritura de
diretiva antecipada da vontade ou testamento vital, constante no número V, como
é popularmente conhecida, temos que nos atentar aos limites impostos pela
Resolução do Conselho Nacional de Medicina nº 1.995, de 9 de agosto de 2012, e
pela resolução 2.217/18 (Código de Ética Médica) e pelo art. 395 da nova
Consolidação Normativa do Estado do Rio de Janeiro.
Ressalte-se que, de acordo com
as mencionadas Resoluções e o Provimento 87/22 (Código de Normas do Estado do
Rio de Janeiro), o que se permite é que não se estenda a vida de determinado
paciente, quando a adoção de medidas médicas e o uso de novas tecnologias são
desproporcionais ao sofrimento dele, sem chance de reversão do seu quadro
clínico, e quando este já houver deixado expressa a sua vontade de rejeitar
essa inútil e apenas protelatória tentativa de manutenção da sua vida.
Em resumo, o que se pretende é
evitar a distanásia, que significa prolongamento exagerado da morte. O termo
também pode ser empregado como sinônimo de tratamento inútil. A princípio, o
que todos desejam é uma boa morte, isto é, a ortotanásia.
Por seu turno, é muito comum
nos defrontarmos com a seguinte questão: determinada pessoa pretende deixar
expresso que não quer ter o seu sangue transfundido por questões religiosas;
não quer se submeter ao tratamento quimioterápico, entre tantos outros pleitos.
Nesses casos, não vislumbro qualquer óbice à lavratura daquele pretendido ato,
contudo, há que se deixar claro e expresso, que aquela manifestação de vontade
poderá ser ineficaz, i.e., não produzir os efeitos pretendidos ou mesmo ter os
seus efeitos mitigados, por exceder os limites do Código de Ética de Medicina.
Em contrapartida, quando a
manifestação de vontade está em desacordo com a lei vigente, como, por exemplo,
a pessoa que deseja se submeter ao suicídio assistido ou roga que alguém lhe
abrevie a sua vida (eutanásia, §1º, do art. 121, do Código Penal), entendo que
nessa situação não será possível a lavratura de instrumento público.
Contudo, ainda, considerando as
duas hipóteses acima, e.g., suicídio assistido ou eutanásia, entendo que seria
admissível a lavratura de escritura pública se a manifestação dessa vontade
estivesse condicionada à alteração futura da norma jurídica.
Por fim, em relação à pergunta
constante no número VI, se é possível se lavrar escritura de autocuratela, i.e,
em que a própria pessoa determina quem será o seu ou os seus curadores (art.
1.775-A, do Código Civil), na hipótese de vir a ser acometida por alguma doença
que lhe retire a plena capacidade. A resposta é afirmativa.
No entanto, o que tem de restar
claro para a parte declarante é que a sua manifestação de vontade expressa na
escritura pública só terá eficácia se esta pessoa for acometida por doença que
lhe retire a capacidade, necessitando, por conseguinte, de curatela e que haja
posterior decisão judicial favorável com a indicação do nome escolhido para
exercer a curatela previsto na escritura, no processo em que se pretende nomear
curador para aquela pessoa.
Portanto, a escritura existirá,
será válida, porém só terá eficácia após o surgimento do evento futuro e
incerto e ulterior decisão judicial.
Ainda no que se refere à
curatela, importante consignar que, no Estado do Rio de Janeiro, o novo Código
de Normas (Provimento CGJ/RJ 87/22), no seu Livro IV, Título II, Capítulo XI,
Seção I, arts. 405 a 410, admite a lavratura de ata notarial para nomeação de
curador ou curadores e de apoiadores (arts. 1.767, 1.775-A e 1.783-A, todos do
Código Civil), a fim de atestar a incapacidade de determinada pessoa, contudo,
deverá a pretendida ata notarial atender e estar condicionada aos requisitos
adiante expostos:
I. homologação judicial;
II. a interveniência de um
médico especialista responsável pela entrevista com a pessoa que se pretende
nomear curador ou curadores;
III. a interveniência de um
advogado responsável pela entrevista com a pessoa necessitada de curatela; e
IV. solicitação da ata notarial
por todos os parentes até o 2º grau, comprovando, igualmente, a relação de
parentesco.
8. CONCLUSÃO
Conclui-se, pois, que existe
uma ampla liberdade de se contratar, ainda que no âmbito do direito de família,
todavia, o Notário tem que estar atento se aquela manifestação de vontade não
colide ou extrapola os princípios jurídicos balizadores e as normas da
legislação civil pátria; se não se trata de direitos indisponíveis; se as
partes têm plena capacidade civil; se não ofende a moral e os bons costumes.
Sendo assim, ultrapassadas as
premissas acima, a livre manifestação das partes deverá prevalecer sobre outros
fundamentos, prestigiando-se, por conseguinte, os princípios do pacta sunt
servanda e da intervenção mínima do Estado (Parágrafo único, do art. 421, do
Código Civil), conferindo, simultaneamente, ampla liberdade de atuação do
Notário, que deverá intervir de molde a reunir, atender e adequar a
manifestação de vontade das partes ao ordenamento jurídico brasileiro,
garantindo, consequentemente, a segurança jurídica e a paz social.
Fernanda de Freitas Leitão: Tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de
Janeiro.
Fonte: Migalhas