O presente artigo visa examinar a ata
de arrematação, documento derradeiro nos procedimentos extrajudiciais de
caráter satisfativo no registro de imóveis, e aprofundar a compreensão de sua
natureza jurídica, seu papel na formalização da aquisição da propriedade e os
impactos legais decorrentes de seu registro. Além disso, serão exploradas as
especificidades da ata de arrematação em comparação com a escritura pública.
Após a publicação da lei 14.711, de
31/10/23, denominada de “Novo Marco Legal das Garantias”, a ata notarial passou
a ser um dos títulos a ser assentado no registro de imóveis, no caso de
arrematação e adjudicação de imóveis nos leilões públicos extrajudiciais.
O procedimento de execução
extrajudicial pode resultar em arrematação por meio de leilões, adjudicação
pelo credor ou venda direta1. O título formalizado por esses atos notariais,
hábil para o registro, pode trazer certos paradoxos para o sistema do título e
modo2, a ser analisado.
No Brasil, os atos notariais são
praticados exclusivamente por tabeliães de notas ou seus prepostos no exercício
de suas funções e dentro dos limites legais. Esses atos resultam em
instrumentos públicos, documentos lavrados e autorizados pelos notários com fé
pública, destinados a adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir
negócios ou atos jurídicos. A lei 8.935/94, em seu art. 6º, define o ato
notarial como a formalização jurídica da vontade das partes, intervenção em
negócios e atos jurídicos para dar-lhes forma legal, e autenticação de fatos,
tudo com a fé pública conferida pelo Estado ao tabelião.3 Ressalte-se que,
anteriormente, a instrumentalização do ato notarial era realizada por meio de
Escritura Pública, enquanto atualmente passou a ser feita por meio de ata
notarial, além da Escritura mencionada.
A história do notariado moderno se
inicia na Baixa Idade Média, nos séculos XII e XIII d.C., originado da Escola
de Bologna e a Summa artis notarial.4 Atualmente, os atos notariais são
classificados em exclusivos ou concorrentes – sem exclusividade. Os atos
notariais exclusivos podem ser atos protocolares ou extraprotocolates.
Os atos protocolares são aqueles
lançados nos livros de notas, dentre os quais se inserem as atas notariais, as
escrituras públicas, as procurações e os testamentos públicos. Nesse sentido,
formaliza-se, com fé-pública, a manifestação de vontade das partes em ato ou
negócio jurídico em que há a intervenção notarial.
Por outro lado, os atos
extraprotocolares referem-se àqueles em que a intervenção do tabelião e a
prática notarial se dão em documentos não contidos nos livros notariais, como o
reconhecimento de firma, chancela ou letra e a autenticação.5
Os atos notariais concorrentes, que
não são exclusivos dos tabeliães de notas, podem ser praticados por diversos
agentes. Exemplos desses atos incluem a certificação do implemento ou
frustração de condições e outros elementos negociais, bem como a mediação,
conciliação e arbitragem.6
A teoria do negócio jurídico está
diretamente relacionada à atuação dos notários, pois a eles compete a tarefa de
formalizar, de maneira opcional ou obrigatória, a vontade das partes
envolvidas. Essa vontade se concretiza em atos e negócios jurídicos, e o
notário é responsável por orientar os interessados sobre os requisitos legais
necessários para que esses atos ou negócios produzam seus efeitos jurídicos.
Primeiramente, é importante distinguir
fato jurídico de ato jurídico. O fato jurídico é qualquer ocorrência que
impacta o mundo jurídico, gerando efeitos legais. Ele é o grande gênero que
inclui tanto o ato quanto o negócio jurídico, daí ser o título do Livro III da
Parte Geral. O ato jurídico, por sua vez, é definido pela vontade humana com o
objetivo de obter certos efeitos legais desejados. É toda manifestação lícita
de vontade destinada a criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica. O
negócio jurídico é uma categoria específica de ato jurídico caracterizada pela
manifestação de vontade. É crucial destacar a importância da manifestação de
vontade humana, que pode criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões,
ações ou exceções, com a intenção de produzir efeitos no mundo jurídico.
Insere-se a ata notarial como um
instrumento de constatação de fatos presentes, inclusos nos atos da atividade
notarial. Na ata notarial, o tabelião registra tudo o que observa, ouve,
verifica e conclui através de seus próprios sentidos (visão, audição, tato,
olfato e paladar), sem influências externas. Nesse sentido, caracteriza-se como
ato protocolar, pelo qual o notário narra, de forma objetiva, fiel e detalhada fatos
naturais ou jurídicos presenciados ou verificados pessoalmente, em seu Livro de
Notas com fé pública.7 Deste modo, distingue-se da escritura pública, que tem
por função precípua formalizar juridicamente a vontade de uma ou mais partes,
em atos ou negócios jurídicos, os quais fazem prova plena8, isto é, enquanto a
escritura pública inclui uma declaração de vontade destinada a formalizar um
negócio jurídico com fé pública, a ata notarial relata apenas fatos, sem
qualquer declaração de vontade e podendo não constituir nenhum direito. Em
outras palavras, a ata notarial documenta fatos para proteger terceiros,
enquanto a escritura pública descreve uma relação jurídica.
O presente documento público é ato
notarial exclusivo do tabelião de notas. O art. 384 do CPC reconhece a ata
notarial como um meio de prova fundamental.
Antes do novo “Marco Legal das
Garantias”, a competência para a lavratura da ata notarial era, em regra,
definida pela livre escolha do requerente, independentemente do domicílio das
partes ou da localização dos bens objeto do ato ou negócio. No entanto, a ata
notarial deve ser lavrada por um tabelião de notas devidamente investido em
delegação, que não pode praticar atos fora do município para o qual foi
designado.
Porém, o legislador ordinário criou
algumas exceções, em que a competência é exclusiva, como a ata notarial de
usucapião ou de adjudicação compulsória via extrajudicial, em que a atribuição
é do tabelião do município onde situado o imóvel ou a sua maior parte.9 Ambas
as hipóteses de exceção são atos sem valor de confirmação ou estabelecimento de
propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial de
usucapião ou adjudicação compulsória para processamento perante o registrador
de imóveis.10 Essas atas corroboram o título, mas não o criam, embora devessem
constituir um título por si só.
Igualmente, a cobrança de emolumentos
pelo notário por essas atas seguirá as faixas de preço da tabela de emolumentos
para escrituras públicas de transmissão ou constituição de direitos reais, até
que o legislador estadual defina uma forma específica de cobrança.11
O sistema criou as atas de arrematação
na via extrajudicial, instrumentalizando o lance vencedor em leilões
extrajudiciais como negócio derradeiro do procedimento de execução de imóveis
hipotecados ou alienados fiduciariamente em garantia.12 É importante ressaltar
que a lavratura de uma ata notarial de arrematação pelo tabelião de notas,
contendo dados de intimação do devedor e do garantidor, bem como os autos do
leilão e constituindo título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante
a ser registrado na matrícula do imóvel, representa uma novidade trazida pela
lei 14.711/23. Essa inovação configura um tertium genus entre a Escritura
Pública e a Ata Notarial. Assim, ao mesmo tempo que atesta fatos, o tabelião
formaliza a vontade e descreve os elementos essenciais do negócio jurídico,
tudo em um único instrumento notarial.13
Concluído o procedimento de execução
via extrajudicial de hipoteca ou alienação fiduciária, e havendo lance
vencedor, os autos do leilão e o processo de execução extrajudicial da hipoteca
serão distribuídos ao tabelião de notas com circunscrição delegada que abranja
o local do imóvel para lavratura de ata notarial de arrematação, que conterá os
dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos do leilão.
Em sendo a ata notarial a constatação
de fatos, por parte do tabelião, no mundo fenomenologicamente aferível, não
resta dúvida de que a ata notarial é um ato-fato jurídico. Aquilo que o tabelião
constata, no exato sentido da sua pura descrição, independe do elemento
volitivo, muito embora no campo dos efeitos a ata notarial possa eventualmente
ter contorno de ato ou de negócio jurídico.
No caso específico da ata notarial de
arrematação, descreve a manifestação de vontade de um sujeito que arremata um
bem perante o leiloeiro, configurando, assim, um negócio jurídico indireto. Ou
seja, o tabelião certifica a ocorrência do evento diante do leiloeiro, mas não
declara a vontade; ele apenas descreve a manifestação da vontade apresentada ao
leiloeiro.
Ao contrário das atas notariais
usuais, a ata de arrematação representa uma modalidade distinta, uma vez que o
tabelião indiretamente corporifica o negócio jurídico. Nesse contexto, a ata
descreve o negócio concluído, reconhecendo que a pessoa expressou sua vontade,
adquiriu o imóvel e efetuou o pagamento. Dessa maneira, é correto afirmar que a
ata de arrematação possui natureza de negócio jurídico indireto.
Enquanto as atas notariais em geral
não são registráveis por descreverem apenas fatos, esta ata, por descrever um
negócio jurídico, ainda que indireto, é registrável, tendo por base os art. 221
e 167, inciso I, item 48, que dispõe:
“Art. 167 – No Registro de Imóveis,
além da matrícula, serão feitos.
I – o registro:
48) de outros negócios jurídicos de
transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de
direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas
em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo
do art. 108 da lei 10.406, de 10/1/02 (Código Civil).”
Conforme se extrai da disposição do
art. 48, os “outros negócios jurídicos de transmissão”, não se referem ao
conteúdo, mas à forma, que é representada pela ata notarial de arrematação – um
negócio jurídico indireto.
Na realidade, a ata notarial deveria
ter sido originalmente incluída no inciso I do art. 221 da LRP. No entanto, em
vez disso, foi inserida no art. 7º-A, §2º, como parte de uma categoria mais
ampla. Veja:
Art. 7º-A, §2º, LRP. O tabelião de
notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação
da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará
o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado,
o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da lei 6.015,
de 31/12/73 (lei de registros públicos), respeitada a competência própria dos
tabeliães de protesto.
Embora o §2º trate da ata de
constatação da verificação da ocorrência ou da frustração das condições
negociais, dentro dessa categoria estão abrangidas ocorrências de negócios
translativos, como a arrematação. É importante ressaltar que, do ponto de vista
intrínseco, a ata de arrematação mantém sua natureza como meio de prova, mas
adquire a força e a importância de um título registrado no registro
imobiliário.
A atribuição do tabelião de notas é
similar àquela das atas notariais de usucapião e adjudicação compulsória, sendo
responsabilidade do tabelião da circunscrição onde o imóvel está localizado. No
entanto, se houver mais de um tabelionato de notas na área, a atribuição está
sujeita à prévia distribuição.
A cobrança de emolumentos ainda não
está resolvida por lei estadual, mas é provável que siga um modelo semelhante
ao das atas notariais de usucapião e adjudicação compulsória na via
extrajudicial.
A aquisição da propriedade pelo
arrematante é originária, o que confere à ata notarial um caráter declaratório,
embora a torne oponível erga omnes. A ata notarial formaliza a arrematação da
propriedade do imóvel hipotecado ou consolidado no patrimônio do credor
fiduciário..
A lei 14.711, de 31/10/23, estabelece,
em seu art. 9º, § 11, que a data de consolidação da propriedade na execução da
alienação fiduciária equivale à data de expedição da ata notarial de
arrematação após o leilão público bem-sucedido, no contexto da execução da
hipoteca pela via extrajudicial. Portanto, se o imóvel estiver alugado, o
locador pode denunciar o contrato de locação com um prazo de trinta dias para
desocupação, tendo o poder de solicitar a imissão na posse ao Poder Judiciário,
mesmo antes do registro.14
Da mesma forma, os direitos reais de
garantia ou constrições, inclusive penhoras, arrestos, bloqueios e
indisponibilidades de qualquer natureza, incidentes sobre o direito real de
aquisição do fiduciante não obstam a consolidação da propriedade no patrimônio
do credor fiduciário e a venda do imóvel para realização da garantia na
hipoteca.
É importante observar que a ata
notarial pode estar incorporando a propriedade inter partes do direito
espanhol, uma vez que não é oponível perante terceiros até ser registrada no
fólio real.15 O sistema espanhol é baseado no princípio do título, embora adote
o princípio da separação, semelhante à Alemanha. Os efeitos inerentes aos
direitos reais, segundo o princípio do consenso no sistema espanhol, são
expressos em duas etapas. A primeira consiste no contrato em si, caracterizado
como um negócio jurídico obrigacional, e um acordo de vontade voltado para a transferência
do direito real (traditio), que surge como um negócio jurídico dispositivo.
O sistema espanhol, assim como o
alemão, concede proteção aos terceiros, principalmente em nome da fé pública
registral. Esse sistema adota o princípio da causalidade entre o negócio
jurídico obrigacional e o jurídico-real, e entre este e o registro. A causalidade
visa proteger os terceiros, pois as hipóteses de invalidação do registro por
inexatidão são limitadas pela regra protetiva do terceiro hipotecário, cuja
inscrição não será afetada por causas relativas aos titulares anteriores na
cadeia dominial que culminou na constituição do seu direito.
A regra protetiva do terceiro
hipotecário pelo sistema espanhol leva à conclusão de que a inscrição do título
no registro não apenas gera sua oponibilidade erga omnes, mas também implica
uma espécie de efeito resolutivo, extinguindo eventuais direitos reais inter
partes incompatíveis ou contraditórios anteriormente constituídos sobre o
imóvel.
A presente ata de arrematação, ao ser
prenotada no protocolo do registro de imóveis da circunscrição do imóvel, assim
como a Carta de Arrematação Judicial, não é obstada pela indisponibilidade,
pois representa uma espécie de alienação forçada capaz de promover o
cancelamento indireto de penhoras, arrestos e outros gravames, assemelhando-se
ao efeito resolutivo no sistema espanhol.
A transmissão da propriedade ocorre
por meio do título – ata de arrematação -, conforme previsto na legislação. O
registro é declaratório e não constitui condição para a imissão na posse pelo
arrematante nos leilões públicos extrajudiciais.
A ata notarial de arrematação pode
configurar-se como uma nova exceção ao título e modo no sistema, contribuindo
para a publicidade do título complexa pela primeira vez no país, o que requer
uma análise mais detalhada.
Fonte: CNR