Este artigo discute se a doação a descendente ou ao
cônjuge pode ou não ser feita além da parte disponível. Trata-se de tema
importantíssimo em discussões de planejamento sucessório e na formalização dos
contratos de doação.
Parte disponível corresponde à metade do patrimônio
de uma pessoa que possui herdeiros necessários (descendentes, ascendentes ou
cônjuge1). A outra metade corresponde à legítima, porção que não pode ser
objeto de liberalidades pelo seu titular diante de sua destinação preferencial
em favor dos herdeiros necessários.
Um dos fundamentos da legítima é apontado por Flávio
Tartuce, com apoio nas lições do jurista italiano Angelo Spatuzzi: a necessidade
de "equilibrar a autonomia do proprietário com o princípio da
solidariedade familiar" (TARTUCE, Flávio. Fundamentos do Direito das
Sucessões em outros sistemas e no Brasil. In: Revista Brasileira de Direito
Civil - RDCivil, Belo Horizonte, v. 25, jul./set. 2020, p. 127).
De fato, não se pode ignorar que o Direito
Sucessório, além de outros fundamentos, envolve uma espécie de compensação
patrimonial aos familiares, que investiram seu tempo, recursos e esforços em
favor da relação familiar. Essa solidariedade familiar, se não tiver sido
voluntária, poderá ter sido forçada com base nas regras de Direito de Família.
Sobre o tema, trazemos a lume esta explicação (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de.
Princípio da vontade presumível no Direito Civil. Brasília: Núcleo de Estudos e
Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023, p. 26):
Assim, de um lado, é certo que a proximidade afetiva
é um vetor para avaliar a vontade presumível do homo medius na escolha dos
sucessores mortis causa. Por exemplo, pais costumam querer deixar o máximo de
bens para seus filhos, especialmente se forem menores.
De outro lado, porém, o legislador leva em conta
também aspectos financeiros, numa ideia de o direito sucessório ser uma
compensação patrimonial pelos dispêndios feitos gratuita ou forçosamente ao
longo da vida entre os familiares. A própria irrepetibilidade dos alimentos
entra nesse cenário.
A solidariedade voluntária e a solidariedade
compulsória do Direito de Família encontram, no Direito Sucessório, uma
potencial compensação financeira. Frise-se o adjetivo potencial: a compensação
financeira com a atribuição patrimonial sucessória não necessariamente existirá
e, se existir, não necessariamente será na mesma medida.
De fato, quando o legislador obriga, por exemplo, os
pais a terem de pagar alimentos aos filhos menores, ele move-se essencialmente
por razões existenciais de direito de família. O filho não terá de devolver o
dinheiro que recebeu do pai a título de alimentos, dada a irrepetibilidade dos
alimentos. Todavia, numa verdadeira espécie de compensação pecuniária,
inspirado por razões de justiça, o legislador estabelece regras sucessórias em
favor dos pais no caso de morte do filho. Esses ascendentes terão uma posição
privilegiada na ordem de vocação hereditária.
O legislador vai além quando se trata dos familiares
privilegiados (ascendentes, descendentes e cônjuge). Ele estabelece a legítima
como um limite a liberdade de testar. Quem tem um familiar privilegiado é
proibido de dispor de mais de 50% do seu patrimônio por meio de testamento. A
razão dessa regra é não apenas de ordem existencial, mas, sobretudo, de ordem
patrimonial: o legislador quer garantir uma espécie de compensação financeira
pelos dispêndios financeiros (ainda que potenciais) dos familiares
privilegiados entre si.
É preciso ser direto. Direito sucessório não é um
ramo do direito civil baseado apenas em reflexões existenciais ou afetivas. É
ramo substancialmente patrimonial. Objetiva partilhar bens. Sem bens, não há
transmissão hereditária. É romântico sublinhar aspectos afetivos ou
existenciais ao se tratar do direito sucessório, pois, se o falecido não tiver
deixado bens, nada haverá a partilhar. Aliás, é por conta desse ambiente mais
patrimonializado que o direito sucessório acomoda o princípio da vontade
soberana do testador2. Enfim, no direito sucessório, reflexões
extrapatrimoniais são importantes, mas em menor escala do que as de índole
patrimonial.
Logo, é evidente que o legislador precisa fazer
reflexões de índole pecuniária para identificar a vontade presumível do
falecido, tudo como forma de compensar pecuniariamente os familiares mais
próximos.
Por exemplo, os genitores investem valores
elevadíssimos na criação dos seus filhos menores. O consorte (cônjuge ou
companheiro) renuncia a projetos profissionais ou pessoais e investe seu tempo
dedicando-se ao bem-estar do outro. O filho, ao adquirir autonomia
profissional, tende a ajudar os pais que estejam em situação de necessidade.
Além disso, o próprio legislador torna obrigatório esse auxílio financeiro por
meio dos alimentos no caso de necessidade de um desses familiares próximos. Em
contrapartida, esses familiares privilegiados são prestigiados pelas regras de
direito sucessório.
Entender o tema sob a ótica do princípio da vontade
presumível é ferramenta poderosa não apenas para o juiz enfrentar os casos
concretos, mas também para o legislador reavaliar constantemente a atualidade
das regras de direito sucessório.
A proteção da legítima é pensada inicialmente como
uma restrição à liberdade de testar. O Código Civil "adotou o 'sistema da
liberdade de testar limitada', de modo que, se o testador possui herdeiros
necessa'rios, ser-lhe-a' vedado dispor, em testamento, de mais da metade de seu
patrimo^nio" (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil.
Rio de Janeiro: Método, 2024, p. 1.497). Daí se segue o princípio da
intangibilidade da legítima.
Acontece que essa proteção à legítima seria
facilmente burlada se se esquecesse que, em vida, a pessoa poderia dispor
gratuitamente dos seus bens além da parte disponível, em verdadeira burla à
proteção da legítima. Por isso, para evitar esses dribles à legítima, o
ordenamento fecha o cerco para liberalidades por atos inter vivos mediante
regras protetivas da legítima.
Uma dessas regras é a nulidade do excesso no caso de
doação inoficiosa, conforme no art. 549 do Código Civil3. Diz-se inoficiosa a
doação de bem que exceda à metade do patrimônio do doador, quando este tiver
herdeiro necessário. Para tal efeito, leva-se em conta o cômputo do patrimônio
no momento da liberalidade. Assim, se uma pessoa doa 80% do seu patrimônio a um
terceiro, haverá nulidade de 30% dessa liberalidade por configurar doação
inoficiosa (art. 549 do Código Civil).
A pergunta central deste artigo é a seguinte: essa
nulidade do excesso no caso de doação inoficiosa aplica-se mesmo na hipótese de
o donatário ser um dos descendentes do doador ou ser o cônjuge?
A resposta, ao nosso sentir, é negativa.
Isso, porque, na hipótese de liberalidade a um
descendente ou ao cônjuge, o ordenamento lança mão de outra ferramenta
protetiva da legítima: o instituto da colação.
A colação é o dever de, com a abertura da sucessão
mortis causa, os descendentes ou o cônjuge levarem em conta as liberalidades
recebidas do falecido como antecipação do respectivo quinhão hereditário
procedente da legítima (arts. 2.002 e seguintes do Código Civil). É dever de
eles trazerem para comparação com os outros descendentes as liberalidades
recebidas do falecido. O objetivo é que, ao cabo da partilha mortis causa,
todos os descendentes fiquem com um quinhão hereditário igual a partir da
legítima. Aliás, isso explica o porquê de o art. 544 do Código
Civil4 estabelecer que a doação feita a descendente ou ao outro cônjuge é
um adiantamento do que lhe cabe por herança.
Assim, se um pai doar 80% do seu patrimônio a um
filho favorito, não haverá prejuízo algum para os demais filhos. Com a futura
abertura da sucessão mortis causa do pai, o filho favorito terá de colacionar a
liberalidade recebida. Se, por exemplo, há outros três irmãos e se o pai não
deixou nenhum bem a partilhar, caberá ao filho favorito reter para si 20% da
liberalidade e, a título de excesso, repassar 60% da liberalidade recebida para
divisão pro rata com seus irmãos. Desse modo, ao cabo da partilha mortis causa,
cada filho ficará com 20% de herança.
O raciocínio é parecido quando estamos diante de
doação feita a cônjuge. Com a morte de um dos cônjuges, o viúvo terá de
colacionar as liberalidades recebidas.
Nesse ponto, há um ponto omisso na lei: como ficaria
a situação do cônjuge que recebeu liberalidades do outro e que se divorciou
antes da abertura da sucessão mortis causa? Esse ex-cônjuge teria ou não dever
de colacionar?
Tivemos a oportunidade de, em artigo publicado em
coautoria com o professor Flávio Tartuce, defender a existência de o ex-cônjuge
colacionar as liberalidades recebidas, mesmo não sendo herdeiro. Mas essa
colação, no máximo, acarretar-lhe-ia o dever de devolver eventual excesso em
relação ao que receberia se não tivesse se divorciado. Sobre o tema,
transcrevemos este excerto do artigo5:
Começamos este texto com um caso concreto, a fim de
analisar a polêmica do seu tema central. Suponha-se que um marido tenha doado
um apartamento, de um milhão de reais, para a sua esposa. Na época, esse marido
tinha um outro imóvel, uma casa também de um milhão de reais. Tempos depois, o
marido vende a casa e gasta o dinheiro com viagens de luxo pelo mundo afora.
Após acabar o dinheiro, gasto por ele, o casal entra em uma grave crise, se
divorcia e a ex-esposa permanece com o apartamento doado como um bem
particular.
Alguns anos depois, o ex-marido falece, sem deixar
qualquer bem aos seus herdeiros. Supondo-se que o falecido tenha deixado dois
filhos unilaterais (descendentes apenas dele, e não da esposa), indaga-se: esses
filhos podem exigir da ex-madrasta a colação daquele apartamento?
O caso acima chama a atenção para uma questão que
não está bem explicitada no texto do Código Civil, qual seja a dúvida se o
viúvo ou o ex-cônjuge têm ou não o dever de colacionar.
(...)
O problema (...) reside na hipótese em que, antes do
falecimento, tenha ocorrido o fim do relacionamento do casal. A questão, nesse
caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades
recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa
questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem
definidas.
A primeira delas afirma que o ex-cônjuge não tem
qualquer dever de colação, pois trata-se de instituto reservado apenas a
herdeiros necessários, especificamente aos descendentes e ao cônjuge que ainda
mantinha vínculo conjugal com o falecido ao tempo da morte. Em síntese, como o
ex-cônjuge não é herdeiro por ter rompido o vínculo conjugal antes da abertura
da sucessão mortis causa, nada lhe caberia colacionar. O fato de ele ter se
divorciado antes da morte seria uma espécie de blindagem às liberalidades
recebidas. Só restaria aos filhos unilaterais, no exemplo indicado no início
deste texto, o lamento. Nem mesmo lhes sobraria eventual tentativa de
invalidação de doação inoficiosa, uma vez que, à época da liberalidade, o
falecido havia respeitado os limites da sua parte disponível, em consonância
com o art. 549 do Código Civil, que veda as doações inoficiosas, com a seguinte
dicção: "nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o
doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento".
A segunda corrente, por sua vez, é pela
obrigatoriedade de o ex-cônjuge colacionar a liberalidade recebida, mesmo não
sendo herdeiro. Essa colação, porém, seria feita apenas para o ex-cônjuge
devolver o eventual excesso do que foi recebido, supondo-se que ele não tivesse
se divorciado e ainda fosse herdeiro. A colação não transformará o ex-cônjuge
em herdeiro e, portanto, jamais poderá beneficiá-lo com mais bens. A ideia,
para essa vertente, é a de que o dever de colação do ex-cônjuge não é para
beneficiá-lo com a condição de herdeiro, mas sim para evitar que os
descendentes sejam prejudicados pelo simples fato de, antes da morte, o falecido
ter se divorciado. Objetiva-se proteger os descendentes do falecido na hipótese
de o patrimônio líquido deixado por ele não ser suficiente para aquinhoá-los
com uma porção, no mínimo, igual à liberalidade recebida pelo ex-cônjuge.
No exemplo citado no início deste texto, como o
falecido nada deixou de patrimônio, pois tudo gastou, a ex-esposa teria de
colacionar o apartamento de um milhão de reais para igualação de legítimas com
os dois filhos unilaterais do falecido. E, considerando-se a atual concorrência
sucessória entre os descendentes e o viúvo quanto a bens particulares - nos
termos do que está no art. 1.829, inc. I, do Código Civil -, cada um deles
deveria ficar com um terço do citado apartamento. Logo, a ex-esposa teria de
transferir dois terços do apartamento para repartição entre os dois filhos
unilaterais, descendentes somente do autor da herança.
Caso, porém, o falecido tivesse partido desta vida
em prosperidade financeira, deixando, a título de ilustração, um patrimônio de
dez milhões de reais, não haveria qualquer necessidade de a ex-esposa
transferir frações ideais do apartamento aos dois filhos unilaterais do
falecido. Isso porque os filhos já haverão de receber, a título de herança,
cinco milhões de reais, valor muito superior à liberalidade recebida em vida
pelo ex-cônjuge. Evidentemente, o ex-cônjuge nada poderá reivindicar a título
de herança, pois não é herdeiro. Portanto, a colação será imposta apenas para
beneficiar os descendentes do falecido, e não para prejudicá-los.
Entre as duas correntes, adotamos, com unanimidade,
a segunda e última, fruto de uma interpretação extensiva e sistemática dos
arts. 544 e 2.002 do Código Civil e que efetiva, com justiça, equidade e
correição, a aplicação do bom Direito.
Em suma, entendemos que não se aplica a regra de
nulidade de doação inoficiosa prevista no art. 549 do Código Civil para as
hipóteses de doações feitas a descendentes ou a cônjuge, visto que, nesses
casos, prevalece a regra especial relativa ao dever de colação (art. 544 e
2.002 e seguintes do Código Civil). A título de curiosidade, o Anteprojeto de
Reforma do Código Civil, elaborada pela Comissão de Juristas nomeada pelo
Presidente do Senado Federal (2023/2024), sugeriu deixar esse entendimento
textual no art. 549 do Código Civil mediante ressalva expressa à hipótese do
art. 544 do Código Civil. Este é o texto do Anteprojeto: "Art. 549. Salvo
na hipótese do art. 544, é ineficaz a doação quanto à parte que exceder à de
que o doador poderia dispor em testamento, no momento da liberalidade. (...)".
Para saber mais dos trabalhos da comissão e do seu relatório final, ver:
https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630.
Fonte: Migalhas