Passando à margem da discussão sobre a legalidade da
cláusula de renúncia à condição de herdeiro, entre e cônjuges e companheiros,
tenho por objetivo neste texto fazer comentários muito breves sobre a
registrabilidade dos pactos que contemplam tal cláusula.
Tive oportunidade de escrever mais amplamente sobre o
tema, em trabalho publicado em Portugal1, e que também integra a 3ª edição do
livro Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial2.
Em recente decisão, de 1º/10/243, o CSM do Estado de
São Paulo, decidiu, por maioria, pela registrabilidade do pacto no registro
imobiliário, no livro 3, tendo a ementa os seguintes termos:
"Registro de Imóveis - Escritura pública de pacto
antenupcial que fixa o regime da separação convencional de bens - Cláusula que
prevê a renúncia recíproca ao direito sucessório em concorrência com herdeiros
de primeira classe, conforme previsão do art. 1.829, I, do CC - Desqualificação
pelo Oficial e dúvida julgada procedente, sob o argumento de infringência ao
art. 426 do CC, que veda contrato cujo objeto seja herança de pessoa viva.
Controvérsia doutrinária acerca da validade da renúncia antecipada ao direito
sucessório concorrencial Validade da renúncia defendida por parte da doutrina,
que não vislumbra transgressão a nenhum dispositivo legal (arts. 426, 1.784 e
1.804, parágrafo único, todos do CC). Distinção entrepacta corvina e renúncia
antecipada à herança, que não tem como objeto disposição sobre o patrimônio de
pessoa viva Discussão sobre a legalidade da renúncia antecipada de herdeiro
necessário à legítima, antes da abertura da sucessão, que somente seria
possível de lege ferenda. Cônjuges devidamente advertidos, por ocasião da
lavratura da escritura, a respeito da controvérsia do tema e possibilidade de
invalidação futura da cláusula Registro no livro 03 do RI obstado em razão de
uma única cláusula, impedindo que o pacto como umtodo surta efeitos perante
terceiros Validade da renúncia antecipada será avaliada na esfera jurisdicional
se a sociedade e o vínculo conjugal terminarem pela morte de um dos cônjuges e
se houver concorrência na sucessão Registro do pacto essencial para que o
regime da separaçãoconvencional de bens, em sua totalidade, tenha eficácia em
face de terceiros. Registro do pacto não significa adesão à legalidade da
cláusula de renúncia antecipada, aberta a via jurisdicional para discussão dos
interessados, após a abertura da sucessão. Distinção entre a amplitude da
qualificação do registrador para o registro constitutivo de direitos reais e
para o registro de pacto antenupcial, para fins de eficácia perante terceiros.
Apelação provida para determinar o registro do pacto antenupcial" (grifamos).
O acórdão aborda aspectos importantes e faz
relevantes afirmações.
Vale destacar o ponto em que analisa a amplitude da
qualificação do registrador no caso. Para além disso, o risco para a segurança
jurídica no rechaço de um registro por eventual nulidade de uma cláusula em um
pacto antenupcial que, ao fim e ao cabo, sequer é esssencial.
O relator, em seu voto, após discorrer sobre as
controvérsias em torno da validade da cláusula de renúncia à condição de
herdeiro, afirma quanto à negativa do registro:
Entendo bastante acertada a decisão, a lamentar apenas
que não tenha sido proferida por unanimidade, e especialmente, que tenha
decorrido da negativa de um registrador à prática do ato, ensejando a
suscitação da dúvida.
Como tive oportunidade de apontar, no texto publicado,
não pode ser óbice à habilitação para o casamento, ou ao registro no livro 3 do
Registro de Imóveis, a cláusula em questão, pactuada livremente pelos nubentes,
dentro do sua liberdade de contratar - a validade da cláusula, como bem
esclarecido pelo acórdão, não deve ser verificada pelo registrador imobiliário
(como também não deve ser pelo registrador civil). Para produção de efeitos
futuros, sua validade deve ser analisada à luz do direito vigente no momento do
óbito de um dos cônjuges, e em eventual arguição por um interessado.
Inicialmente, a apresentação de óbices ao registro
invade seara que, no caso, é exclusiva do notário - a inserção da cláusula, e
sua eventual nulidade (apenas da cláusula, e não do pacto), não tem qualquer
reflexo no registro civil do casamento ou no registro do pacto, para fins
publicitários, no registro imobiliário.
O notário, instado a lavar uma escritura de pacto
antenupcial, ou pacto patrimonial, na qual as partes solicitem que se insira
cláusula de renúncia à condição de herdeiro, deve lavrar o ato notarial, com
inserção nas escrituras que os nubentes foram orientados sobre todas as
consequências da adoção do regime, inclusive quanto aos aspectos sucessórios.
Diante da discussão doutrinária e jurisprudencial
quanto à nulidade, o notário poderá praticar o ato, enquanto intérprete e
aplicador do direito, respondendo pela solução jurídica aplicada, a ser adotada
após orientação das partes sobre todas as circunstâncias envolvidas e clara
opção destas, a ser expressada no ato
notarial.
Dentro desse contexto, em que a atividade notarial do
tabelião, profissional do direito, se exerce com independência jurídica e
imparcialidade, no acolhimento da vontade das partes, devem ter em conta os
notários, primeiramente, a autonomia de vontade das partes.
A autonomia de vontade das partes deve ir ao encontro
da liberdade de interpretação do tabelião, que deve praticar os atos que
entender estarem dentro de um contexto de legalidade.
Em termos práticos, partilhando do entendimento de que
não há nulidade na cláusula, deve o tabelião inserir nas escrituras de pacto
antenupcial e patrimonial, a cláusula de renúncia recíproca à condição de
herdeiro.
Feita tal qualificação pelo tabelião, e não sendo a
cláusula essencial aos pactos antenupciais, não devem os registradores civis e
imobiliários avançarem com qualificação sobre a validade da mesma.
Em boa hora veio a decisão, mas como já afirmado,
decorrente de uma qualificação que, com a devida vênia, acaba por desmerecer a
qualidade de profissionais do Direito reconhecida legalmente aos delegatários.
O reconhecimento não deve vir apenas de fora, mas, principalmente, de dentro da
profissão. O registrador, em hipóteses como a ventilada, ao qualificar
positivamente os títulos, estará prestigiando a independência jurídica dos
notários.
Especificamente, e sucintamente, sobre a atuação dos
registradores, entendo que:
Quanto ao RCPN, examinará o registrador civil, quando
for o caso, o pacto antenupcial no curso do processo de habilitação para o
casamento.
Caso não exista qualquer vício no pacto, no que
concerne aos requisitos referentes ao casamento, cabe ao registrador civil
prosseguir no processo de habilitação, com posterior celebração do casamento e
lavratura do registro em livro próprio (livro B - art. 33, II, da lei
6.015/73), com as indicações sobre o pacto nos termos do inciso VII do art.
1.536 do CC.
Isso porque não releva para o registro civil o exame
de cláusulas que digam respeito aos direitos sucessórios entre cônjuges. Os
efeitos patrimoniais do casamento, durante a sociedade conjugal, estarão
definidos e preservados.
É certo que a cláusula de renúncia à condição de
herdeiro poderá vir a ser discutida, diante das controvérsias existentes. Ainda
que venha a ser considerada inválida, o pacto antenupcial não será alcançado
integralmente pela declaração de invalidade da cláusula, como se vê do teor do
art. 1.655 do CC, inserido no capítulo que trata do pacto antenupcial: "É
nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de
lei". O entendimento pela nulidade, no caso, se restringiria à cláusula em
discussão, mantendo-se hígido o pacto quanto ao regime de bens adotado.
Portanto, não deve o registrador civil recusar a
prática dos atos referentes ao casamento.
Passando ao registro imobiliário, encontramos
previsões de registro e averbação do pacto antenupcial nos arts. 167, I, 12;
167, II, 1; 178, V; e 244 da lei 6.015/73. Determina a legislação o registro do
pacto no livro 3, Registro Auxiliar, e sua averbação nas matrículas dos imóveis
que pertençam aos cônjuges (tanto dos imóveis que constituem bens particulares,
quanto dos comuns).
O CC condiciona o registro do pacto antenupcial no
Registro Imobiliário, no livro 3, para a produção de efeitos com relação a
terceiros4. A lei 6.015/73, no art. 244, cuida dos atos a praticar no
registro imobiliário5.
O pacto antenupcial é ineficaz se não lhe seguir o
casamento (art. 1.653 do CC). Assim, só terá acesso ao registro imobiliário se
tiver acontecido o casamento. O oficial do registro civil, no exercício do seu
mister, já examinou o pacto, no processo de habilitação para o casamento, e
lavrou o assento do matrimônio. O registrador imobiliário, ao ser provocado
para a prática de atos em que o título, em sentido formal, seja o pacto
antenupcial, deve exigir comprovação do casamento, a demonstrar a eficácia daquele.
No exame do título, não deve o registrador
imobiliário, pelas mesmas razões que o registrador civil, qualificá-lo
negativamente.
Os atos praticados no registro imobiliário, relativos
aos pactos antenupciais, têm como finalidade dar publicidade aos mesmos,
garantindo produção de efeitos em relação a terceiros, e alcançando assim a
segurança jurídica dinâmica. Já realizado o casamento, e não sendo nulo o
pacto, eventual discussão sobre cláusula que verse sobre também eventuais
direitos sucessórios (pois pode haver patrimônio ou não por ocasião do
passamento de cada um dos cônjuges), não há de obstar seu acesso ao registro
imobiliário.
O tema está bastante vivo, e precisamos, como
notários e registradores, atender aos anseios da sociedade, solucionando as
questões no âmbito dos serviços notariais e registrais, sem o chamamento do
Poder Judiciário - reservado para, apenas, quando absolutamente indispensável.
Assim valorizaremos nossa condição de profissionais do Direito.
Fonte: Migalhas