A
indisponibilidade de bens na era digital: Uma análise crítica do provimento CNJ
188/2024 e seus impactos no registro de imóveis.
O
presente artigo analisa o Provimento CNJ 188/2024, que reformou a plataforma da
CNIB 2.0. Aborda a hipertrofia da ferramenta e o recrudescimento das
indisponibilidades de bens em função direta da plataformização do registro
público, com foco nos efeitos jurídicos da prenotação e na problemática do § 3º
do art. 320-I do CNN-CN-CNJ-Extra, que impede o registro de títulos prenotados
em caso de superveniência de ordem de indisponibilidade.
Argumenta-se
que a norma em questão, ao fulminar o direito vestibular de prenotação, afronta
o direito de propriedade e seus atributos, criando anomalias no sistema civil,
registral e processual. Defende-se a necessidade de revisão do dispositivo, com
vistas a garantir a segurança jurídica e os direitos fundamentais dos cidadãos.
Palavras-chave:
Indisponibilidade de bens, CNIB 2.0, Provimento CNJ 188/2024.
Introdução
O
Provimento CNJ 188 de 4/12/2024 reformou a plataforma da Central Nacional de
Indisponibilidade de bens (CNIB 2.0), ajustando e aperfeiçoando o sistema com
vista a torná-lo mais eficiente e racional.
O
instituto jurídico da indisponibilidade de bens nasceu com objetivos claros e
muito específicos - combate à dissipação patrimonial decorrente de improbidade
administrativa, intervenção em instituições financeiras, combate à lavagem de
dinheiro e financiamento de terrorismo internacional, confisco de bens por
tráfico de drogas e outras atividades excepcionais e de grande repercussão
social.1 Note-se a preponderância de um interesse geral em todas essas
iniciativas legislativas em contraste com a explosão de ordens oriundas de
processos ordinários de execuções trabalhistas e civis.
O
sistema criado em 2014 (Provimento CNJ 39/2014) vem de substituir
progressivamente as figuras tradicionais do processo civil brasileiro, como a
penhora, arresto e sequestro em execuções civis e trabalhistas. No caso das
execuções trabalhistas, ainda que se possa argumentar, com base na Teoria do
Diálogo das Fontes, que a decretação de indisponibilidades no processo
trabalhista encontra seu fundamento no art. 185-A do CTN, não se deve esquecer
que no caso dos créditos privilegiados se exige o preenchimento de
pré-requisitos para a deflagração da indisponibilidade: a) haver devedor
tributário; b) ocorrer citação; c) faltar nomeação de bens à penhora; e d) ser
impossível localizar bens passíveis de constrição, o que não ocorre
ordinariamente nas ordens oriundas tanto do foro trabalhista como do cível.2
De
fato, nos termos do art. 889 da CLT, os preceitos da Lei de Executivos Fiscais
(lei 6.830/1980) aplicam-se à execução trabalhista de forma subsidiária desde
que não contrariem o processo da Justiça do Trabalho. Sabemos que os
instrumentos processuais para garantia da execução trabalhista pressupõem a
citação do executado. Não pagando, nem garantindo a execução, "seguir-se-á
penhora dos bens, tantos quantos bastem ao pagamento da importância da
condenação", nos termos do art. 883 da mesma CLT.
Baseados
em dados fidedignos, do total de quase 2 milhões de inscrições feitas na
plataforma, só a Justiça do Trabalho é responsável por cerca de 63.48% do total
das ordens postadas na plataforma. Acrescente-se: uma profusão delas versa
sobre execuções por valores irrisórios e desproporcionais, em afronta ao art.
8º do CPC, afetando e imobilizando o patrimônio de devedores reconhecidamente
solventes.3 Além disso, tais ordens teratológicas geram um custoso processo de
averbações em milhares de imóveis de propriedade das instituições financeiras,
para logo seguir-se a ordem de cancelamento, em regra sem qualquer fundamento
jurídico.
Plataformização
do Registro Público
O
fato é que não compreendemos perfeitamente o fenômeno do impacto que os meios
eletrônicos têm nas transações econômicas, jurídicas e sociais. Num recorte
exemplificativo, pensemos que a CNIB transportou para a nova plataforma
"mais de 200 milhões de atos já cadastrados na central original"4 - o
que nos dá a exata noção de magnitude da base de dados cuja gestão é
humanamente impossível de se realizar sem o concurso das máquinas.
A
criação dessa importante infovia desencadeou a irrupção de problemas
inesperados - como a hipertrofia da ferramenta, fenômeno que exsurge de modo
claro para o observador atento. O estudo da magnificação de eventos sugere que
ela se dá em função direta da plataformização do registro público, o que acaba
por transformar substancialmente o ecossistema registral e notarial,
ocasionando fenômenos originais e não previstos.
Pode-se
cogitar de uma distorção que guarda certa semelhança com o Paradoxo de Jevons5:
à medida que os avanços tecnológicos aumentam a eficiência da plataforma, maior
é geração de demandas que tendem a se diversificar e a acolher hipóteses
análogas de constrição - one size fits all. Isto ocorre porque a maior
eficiência da infovia tende a reduzir o custo de utilização do serviço,
estimulando o crescimento da demanda. Ou seja, a facilidade de acesso, aliada à
eficiência dos recursos tecnológicos, terá acarretado a aceleração inesperada
(e quiçá ilegal) de novas modalidades de constrições, substituindo, como se
viu, os instrumentos tradicionais de gravames judiciais.
O
fenômeno levou à explosão de indisponibilidades de bens, desfigurando a função
original, estimulando a opacidade nos negócios jurídicos e gerando maiores e
mais significativos custos transacionais. Há uma década tivemos ocasião de
alertar:
"Enfim,
que diabos de indisponibilidade é essa que acaba por inibir a própria
aquisição? É evidente que, decretada que seja uma indisponibilidade de bens,
tal circunstância jazerá em estado de latência nos escaninhos labirínticos
do sistema, ativando-se com o registro da aquisição.
(...).
Calharia
um estudo para se apurar em que medida o uso desse instrumento é
contraproducente. Nem me refiro, aqui, à indisponibilidade de bens decretada no
bojo de ações de improbidade administrativa, intervenção em instituições
financeiras, combate ao terrorismo; falo da vulgarização do instrumento nos
processos de execução fiscal e trabalhista.
(...)
Como
se vê, o grande drama dos gravames ocultos, que inspirou os legisladores no
Século XIX a criarem o Registro Hipotecário, continua presente e embaraçando o
livre intercâmbio de bens, onerando o sistema com crescentes custos
transacionais. É o chamado "Custo Brasil".6
O
meio é a mensagem
Estamos,
possivelmente, diante de um fenômeno disruptivo percebido por Marshall McLuhan:
os meios eletrônicos não apenas conduzem, mas traduzem e transformam o
transmissor, o receptor e a mensagem, como na sua famosa formulação - the
medium is the message.7 O ecossistema da CNIB que não será tão-somente um
envoltório passivo e neutro, mas uma alavanca disruptiva, processo ativo e
dinâmico tendente a reconformar o próprio registro e o processo executivo
pátrios.
O
problema não é novo e já em 2015 propúnhamos que previamente à inscrição na
plataforma, a autoridade deveria ser "conduzida a um processo preliminar
de consulta acerca da existência de bens ou de direitos inscritos cujos
titulares poderiam ser atingidos pelo gravame. O processo é simples e não
envolve qualquer custo para a sua formulação e gestão. Não se faria a
inscrição na CNIB sem antes certificar-se que inexiste bens e direitos em nome
das pessoas atingidas". Na mesma ocasião propugnávamos a reforma do
sistema, com os argumentos abaixo expendidos.8
Os
efeitos jurídicos da prenotação
Um
dos inesperados efeitos surgidos no desenvolvimento da plataforma encontram-se
no Provimento CN-CNJ 188, de 4/12/2024, que introduziu os artigos 320 e
seguintes no CNN-CN-CNJ.Extra. O dispositivo que nos toca referir é o seguinte:
Art.
320-I. Os oficiais de registro de imóveis deverão consultar, diariamente, a
CNIB e prenotar as ordens de indisponibilidade específicas relativas aos
imóveis matriculados em suas serventias, bem como devem lançar as indisponibilidades
sobre o patrimônio indistinto na base de dados utilizada para o controle da
tramitação de títulos representativos de direitos contraditórios.
(...)
§ 3º
A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos,
ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em
contrário.
A
prenotação é ato próprio de registro (art. 182 e ss. - Do Processo de
Registro). A prioridade registral, que nasce da prenotação, é um direito de
eficácia material cujos efeitos retroagem à data da inscrição do título no
Livro 1 - Protocolo. É indiscutivelmente um direito material, consoante o
disposto no art. 1.246 do Código Civil, in verbis:
Art.
1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao
oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.
É
certo que o lançamento do título no Livro Protocolo proporciona o controle do
transcurso posicional do título na esteira do processo de registro, graduando
os acidentes representados por eventuais títulos concorrentes. A eficácia da
prenotação, nesta perspectiva, é demarcatória de um direito posicional, de
caráter formal. Todavia, o aspecto que deve merecer a nossa melhor consideração
reside no aspecto material que decorre da eficácia jurídica que nasce
diretamente da prenotação. Diz Pontes de Miranda:
"No
art. 534 diz o Código Civil [atual art. 1.246], como regra, portanto, de
direito privado (material): 'A transcrição datar-se-á do dia em que se
apresentar o título ao oficial de registo, e esse o prenotar no
protocolo'".9
Até
a prenotação do título e a ulterior consumação do ato de registro, a situação
jurídica do alienante ainda é de dono do imóvel, sujeito às dívidas cobráveis.
O adquirente, antes do registro, "não pode dispor do imóvel, nem
constituir sobre ele direitos reais, nem lhe cabem as ações de domínio,
inclusive a de reivindicação. A sua situação é como a do comprador de bens
móveis antes da tradição. Nada lhe é dado contra as ações reais e as
constrições (penhoras, arrestos, sequestros), que partam de terceiros ou do
próprio alienante". Todavia, segue o Tratadista:
"Desde
a data em que a promove e obtém a protocolização, o bem imóvel é seu. O negócio
jurídico do acordo investe-o de tal poder. Todavia, a eficácia mesma da
transcrição [registro] é desde a data da protocolização, mas depende do bom
êxito do pedido-exigência. Se houve protocolização e se não procedeu à
transcrição, ou porque se retirou a provocação (pedido-exigência), ou porque
foi denegada, a eficácia é nenhuma; se foi feita a transcrição, a eficácia é
desde a data em que se protocolizou o pedido".[10]
O
próprio Pontes de Miranda aludiria aos efeitos da decretação de falência ou
insolvência do alienante no intervalo periclitante que calha entre a prenotação
do título e o seu registro que "retroage, nesse caso, à data da
prenotação". O tratadista referia-se ao art. 535 do CC1916, sem correlato
no atual, muito embora a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, preveja no inc.
VII do art. 129 o seguinte:
Art.
129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante
conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não
intenção deste fraudar credores:
(...)
VII
- os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos,
por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados
após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior.
A
mesma regra se colhe do art. 215 da LRP, disposição que é tributária do direito
registral brasileiro.11 A ressalva da lei releva os efeitos materiais da
inscrição primigênia (prenotação), in verbis:
Art.
215 São nulos os registros efetuados após sentença de abertura de falência, ou
do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita
anteriormente.
A
regra é tradicional e prestigiada pela nossa melhor doutrina. Serpa Lopes
sustenta que ocorrendo a prenotação, chave do registo imobiliário12, o
"ato da transcrição ou inscrição, uma vez realizado, remonta, em seus
efeitos, à data da prenotação".13 Em outra passagem, registra:
"Se
a inscrição ou a transcrição representa o ato principal, a sua eficácia está
até certo ponto dependente da prenotação no protocolo, pois a prioridade do
registo funda-se na data de sua feitura.
Exerce
função precípua quanto a uma das finalidades do registo, consistente,
inegavelmente, não só na de constituição de direitos ou de requisitos de sua
disponibilidade e de sua publicidade, como a de ser o fundamento da prioridade
dos direitos que lhe estão afetos.
A
posição dos direitos inscritos ou transcritos em relação a um imóvel,
susceptíveis de entrarem em conflito entre si, fica necessariamente fixada pela
ordem das prenotações, no protocolo, solução que se impõe, como bem refere René
Morel, por se harmonizar com um bom sistema de publicidade imobiliária e que,
além disso, aparece como uma consequência do princípio do nascimento do direito
real a partir da data de sua inscrição.
Daí
a razão do art. 202 [atual art. 186 da LRP] preceituar que o número de ordem
determina a prioridade do título, e esta, a preferência dos direitos
reais".14
Afrânio
de Carvalho segue na mesma senda: a "data da inscrição é, em regra, a data
da apresentação do título, vale dizer, da sua prenotação do protocolo", e
segue:
"Quando
o título passa para o livro de inscrição, por se mostrar apto a adquirir a
posição registral, leva consigo a data da sua prenotação no protocolo. A data
da inscrição, porém, será ordinariamente mais avançada do que a do protocolo.
Não obstante, a numeração que lhe tiver sido dada nessa data assegurar-lhe-á a
prioridade em relação a outro sobre o qual tiver precedência na cronologia da
entrada. Só o título que, em confronto com outro, tiver essa prioridade é que
deve ser transportado do protocolo para o livro de inscrição, ficando o outro
retido na prenotação, como num verdadeiro limbo".15
Jurisprudência
Pode-se
dizer que é igualmente clássica a lição prestigiada pelos tribunais
brasileiros, consubstanciada na parêmia tempus regit actum. Ainda que o título
tenha sido formalizado antes da decretação da indisponibilidade, o registro
interdita-se em razão da prévia averbação da constrição. A contrario, tendo
sido prenotado o título, a disposição voluntária será válida e eficaz, embora a
decretação da indisponibilidade lhe suceda in itinere. É o que se decidiu na
Ap. Civ. 1024407-10.2024.8.26.0100: "ao menos sob o ponto de vista dos
princípios registrais, os requisitos de validade e eficácia do título são
observados ao tempo da prenotação (art. 1.246 do Código Civil)".16 De
fato, os requisitos de validade e eficácia do título são observados ao tempo da
prenotação e assim, "em face do princípio da prioridade, gerado pela
prenotação, os títulos contraditórios, preponderam sobre o título prenotado
posteriormente (art. 186 da Lei nº 6.015/73)".17 Noutra passagem, o
mesmo CSMSP aponta:
"se
o art. 1.246, do Código Civil, dispõe que o registro é eficaz desde o
momento em que se apresentar o título ao Oficial de Registro, e este o prenotar
no protocolo, fica claro que a marcha até a inscrição é um verdadeiro processo,
no qual, protocolado o título, compete ao registrador, em observância ao
disposto na Lei de Registros Públicos, fazer seu exame, qualificação e
devolução, com exigências ou registro, no justo prazo".18
As
Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo consagram o
mesmo princípio no item 108.3, Capítulo XX:
"108.3.
Quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem
imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão
sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem
ter assegurado o seu direito de prioridade. Contudo, os títulos que forem
posteriormente protocolados terão suas prenotações suspensas como previsto no
item 108".19
No
STJ o tema da graduação dos direitos já foi objeto de apreciação no caso de
duplicidade de arrematações sobre o mesmo bem imóvel, firmando a corte a tese
de que deve prevalecer a data da primeira prenotação nos termos do art. 186 da
LRP, "tendo em vista que, nos termos do art. 1.246 do CC/2002, a aquisição
do imóvel, embora perfectibilizada com o respectivo registro (7.7.2009),
retroage à data de sua prenotação (25.6.2009)".20 Igualmente no REsp
1.339.876/PR:
"A
data da transcrição é a mesma da prenotação (arts. 182, 183 e 186 da
Lei nº 6.015/1973). Esta define a prioridade dos direitos que lhe são afetos.
Seus efeitos só cessarão se o interessado deixar de atender as exigências
legais no prazo de trinta dias (art. 205 da Lei nº 6.015/1973)".21
A
determinação postada na plataforma da CNIB, ao fulminar o direito vestibular,
acaba por atingir reflexamente os efeitos materiais da inscrição, afrontando o
direito de propriedade e malferindo um de seus principais atributos que é o da
disponibilidade. Ao final e ao cabo, interrompendo-se o curso natural do
processo de registro no decêndio (art. 188 da LRP), sem qualquer culpa ou
responsabilidade do adquirente - presumidamente de boa-fé -, tal fato nos
conduz à necessidade de decisão judicial específica, apreciando o caso concreto
e atacando, fundamentadamente, o ato de inscrição.
O
direito de propriedade, na latência suspensiva da eficácia da prenotação, no
caso da norma do CNJ, acaba por jazer numa espécie de limbo jurídico. Nem mesmo
se pode cancelar a prenotação, pois este ato constitutivo negativo levaria à
aniquilação dos efeitos jurídicos da prioridade sem o devido processo legal e,
ipso facto, a obliteração da preferência dos direitos reais.
Por
fim, calha uma pequena observação - decalcada do artigo de Eduardo Pacheco
Ribeiro de Souza. O CNN-CN-CNJ-Extra permite a lavratura de escrituras, mas
impede o registro - não só destas, mas também daquelas lavradas e prenotadas
antecedentemente no registro. Pergunta-nos o autor citado: "Qual a lógica,
tendo em conta o sistema de duas etapas na aquisição da propriedade? Para a
primeira etapa, a indisponibilidade não é óbice, ainda que decorra da lei e o
efeito seja a nulidade do ato de disposição de bens atingidos pela
indisponibilidade. Quanto à segunda etapa, a indisponibilidade impede o
registro, mesmo a que alcança o protocolo após o ingresso de um título
totalmente hígido".22
Ressalvado
o título prenotado anteriormente à constrição, tanto a lavratura da escritura
quanto o registro sucessivo podem representar mera ineficácia em face da
execução, e não nulidade de pleno direito.
Valeria,
em todo o caso, sopesar o menor impacto que a constrição representaria aos
interessados.
Conclusões
O
sistema eletrônico transformou-se em ferramenta draconiana na medida em que os
vários meios postos à disposição do credor para promover a execução e a
satisfação de seus créditos, a indisponibilidade de bens, entre todos eles, é o
modo mais gravoso para o devedor, subvertendo a ordem e os princípios
tradicionalmente consagrados na lei processual civil (art. 805 do CPC).
Por
essa razão, toda ordem genérica deve ser utilizada de modo prudente e
consentâneo com os princípios da boa-fé, preservando e garantindo o ato
jurídico perfeito e o direito adquirido.
Em
suma, prenotado o título e sem que o interessado deixe escoar o prazo
decadencial da prenotação (no caso de não atendimento a exigências do Cartório
por omissão ou desinteresse - art. 205 da LRP), o registro há de se efetivar,
perfectibilizando-se no iter legal e consagrando o direito.
Proposta
de alteração
Seria
possível aperfeiçoar o sistema trocando simplesmente a ordem do referido § 3º:
§ 3º
A superveniência de ordem de indisponibilidade não impede o registro de títulos
anteriormente prenotados, salvo ordem judicial expressa em sentido contrário.
§ 4º
No caso de prevalência da ordem de indisponibilidade, nos termos do § 3º, o
registro será consumado no prazo legal, porém será ineficaz em relação ao
processo do qual se originou a constrição.
Seja
como for, a regra estampada no § 3º do art. 320-I do CNN-CN-CNJ-Extra, in fine,
deve ser revista. Ela cria uma inesperada anomalia no sistema civil, registral
e processual brasileiro e a consequente fragilização dos direitos e garantias
de direitos fundamentais.
__________
1
Para um excurso retrospectivo, v. JACOMINO, Sérgio. Indisponibilidade de bens
no Registro de Imóveis - Partes I e II. São Paulo: Observatório do Registro,
2024. Disponível: Parte I: https://wp.me/p6rdW-3BS; Parte II:
https://wp.me/p6rdW-3Cz. Vide elenco de leis e dispositivos normativos sobre o
tema da indisponibilidade em: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Da
Indisponibilidade de Bens no Registro de Imóveis. São Paulo: IRIB, 2024, pp.
180 et seq.
2
STJ AgRg no Ag n. 1.429.330/BA, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira
Seção, julgado em 22/8/2012, DJe de 3/9/2012. V. CLAUS, Ben-Hur Silveira. A
aplicação da medida legal de indisponibilidade de bens prevista no art. 185-A
do CTN ao processo do trabalho - Execução trabalhista efetiva, por juiz do
Trabalho. 13.1.2014. disponível:
https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/108635. Vide, igualmente,
a tese n. 137 do 3º Fórum Nacional de Processo do Trabalho (FNPT): "A
Teoria do Diálogo das Fontes é fundamento para a aplicação da medida legal de
indisponibilidade de bens, prevista no art. 185-A do Código Tributário
Nacional, ao Processo do Trabalho". NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de
Andrade. CPC comentado. São Paulo: RT, 17ª ed., 2018, p. 66.
3 Ad
exemplum: Banco do Brasil (202412.1213.03755670-IA-031), Bradesco
(202412.0516.03741645-IA-490), Prefeitura Municipal de São Paulo
(202401.0919.03105495-IA-560), Caixa Econômica (202408.1911.03520312-IA-470),
Itaú (202410.2209.03654741-IA-210), Petrobrás (202410.2209.03654741-IA-210)
entre tantos outros. Dados extraídos da fonte.
4
Informe do ONR - Atualizações sobre a Central de Indisponibilidade de Bens
(CNIB 2.0), postado nas redes sociais no dia 16/1/2025, às 19h:52min.
5 A
referência não é perfeita, mas nos faz pensar, como William Stanley Jevons, que
à medida que os avanços tecnológicos aumentam a eficiência no uso de um
recurso, o consumo total desse recurso pode aumentar, em vez de diminuir.
6
JACOMINO, Sérgio. A Reforma Indisponibilidade de Bens - Um Vírus: Sua Latência
e Potência. São Paulo: Observatório do Registro, 19.9.2015, disponível:
https://wp.me/p6rdW-DM.
7
McLUHAN. Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. PIGNATARI,
Décio (trad.). São Paulo: Cultrix, 1969, p. 108-9.
8
JACOMINO, Sérgio. Op. cit. loc. cit.
9
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo XI. Rio de Janeiro: Borsoi,
1955, § 1.220. Data do Registo, p. 332, n. 1, passim.
10
Op. Cit. § 1.245, p. 435-6, n. 5
11
V. art. 230 do Decreto 4.857/1939.
12 A
expressão é esplêndida por encerrar uma figura de linguagem que encerra a ideia
de processo cuja culminância é a consagração do direito real. A feliz expressão
se acha consagrada desde a Reforma de Nabuco (art. 25 do Decreto 3.453, de 26
de abril de 1865), repetida sucessivamente nos regulamentos subsequentes, mas
abandonada na atual LRP.
13
SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado. Vol. IV, Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
p. 363.
14
Op. Cit. p. 328.
15
CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis, 3ª ed. 1982, Rio de Janeiro:
Forense, p. 398.
16
Ap. Civ. 1024407-10.2024.8.26.0100, São Paulo, j. 15/8/2024, Dje 15/8/2024,
Rel. Des. Francisco Loureiro. Disponível: http://kollsys.org/us5.
17
Ap. Civ. 1003007-96.2021.8.26.0664, Votuporanga, j. 2/12/2021, Dje 24/2/2022,
Rel. Des. Ricardo Mair Anafe. Disponível: http://kollsys.org/rbm.
18
Ap. Civ. 1006060-52.2022.8.26.0114, Campinas, j. 24/3/2023, Dje 25/5/2023, Rel.
Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Disponível: http://kollsys.org/st5.
19 A
redação das NSCGJSP originou-se do Provimento CG 17/1999 que se baseou, por seu
turno, em parecer oferecido no Processo CG 1.671/1998. Destacamos: "De
outro lado, no entanto, se a ordem for genérica, não poderá atingir os títulos
que já estejam tramitando e já tenham a sua prioridade assegurada, mas
impedirão o registro de outros títulos que sejam prenotados em seguida ao
mandado, pelos mesmos motivos". Processo CG 1.671/1998, parecer da lavra
de Antonio Carlos Morais Pucci, Francisco Antonio Bianco Neto, Luiz Paulo
Aliende Ribeiro, Marcelo Fortes Barbosa Filho, Marcelo Martins Berthe, Juízes
Auxiliares da Corregedoria Geral. Disponível: http://kollsys.org/4o4.
20
REsp n. 1.242.656/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado
em 7/6/2011, DJe de 10/6/2011.
21
REsp n. 1.339.876/PR, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado
em 26/4/2016, DJe de 3/5/2016.
22
SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Averbação de indisponibilidade de bens - O
CNJ prestigia a insegurança jurídica. São Paulo: Migalhas Notariais e
Registrais, 16.12.2024. Disponível: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/421591/averbacao-de-indisponibilidade-de-bens--cnj-e-inseguranca-juridica.
Fonte:
Migalhas