O atual CC português, de 1966, não
prevendo o penhor legal, consagrou o direito de retenção enquanto direito real
de garantia, no art. 754 e 755.
Segundo o art. 754, o devedor que disponha
de um crédito contra o seu credor goza de direito de retenção se, estando
obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por
causa dela ou de danos por ela causados.
Assim, são requisitos para existência do
direito de retenção previsto no art. 754 do CC português: i) que o titular do
direito detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem; ii) que o
titular do direito, obrigado à restituição da coisa, seja simultaneamente
credor daquele a quem a deve restituir; iii) que entre os dois créditos exista
uma relação de conexão1.
O 1.º do art. 755, do mesmo diploma
legal, admite o direito de retenção com carácter excecional em relação ao
transportador, albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário,
comodatário e beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de
direito real que tenha obtido a tradição da coisa a que se refere o contrato
prometido. Referimos o carácter "excecional", porque em causa não
está um direito de retenção que assegure a satisfação de um crédito resultante
de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados2.
Servindo a recusa de entrega da coisa para
compelir o devedor ao cumprimento, dúvidas inexistem quanto à função
compulsória do direito de retenção, bem como quanto a consubstanciar uma
garantia de cumprimento lato sensu.
Acresce que, os direitos de retenção
constituídos na constância do atual CC e antes da entrada em vigor do
decreto-lei 48/24, de 25 de julho eram, todos, sem exceção, direitos reais de
garantia, pois neles se encontravam as duas faculdades distintivas
dos direitos reais de garantia, isto é, satisfação do crédito à custa do valor
da coisa com preferência em face dos demais credores do devedor (quer
comuns quer dotados de garantia real não prioritária)3. E tal, sem que o
direito de retenção estivesse, ou esteja, sujeito a registo para consolidar a
sua oponibilidade perante terceiros4.
Precisamente por em causa estar, sempre,
um direito real de garantia, por um lado, apenas podiam (e podem) ser retidas
coisas suscetíveis de serem objeto de penhora. E, por outro, recaindo o direito
de retenção sobre coisa móvel, a posição jurídica do retentor era equiparada à
do credor pignoratício (art. 758 do CC português); já quando o objeto do
direito de retenção era um imóvel, o 1.° do art. 759.°, do mesmo diploma legal,
atribuía ao retentor, enquanto não entregasse a coisa retida, a faculdade de a
executar nos mesmos termos em que o podia fazer um credor hipotecário e de ser
pago com preferência aos demais credores do devedor5.
Por fim, o 2.º do art. 759, do
diploma em apreço, introduzia uma exceção à característica da preferência,
determinando que o direito de retenção prevalecia sobre a hipoteca, ainda que
esta tivesse sido registada anteriormente. Esta solução compreendia-se tendo
presente que o crédito garantido com o direito de retenção resultava,
normalmente, de despesas com a fabricação, conservação ou melhoramento de coisa
alheia, que beneficiavam todos e ser injusto que os restantes se locupletassem
à custa de quem as havia realizado - o retentor. Na verdade, se as despesas
para a manutenção e conservação da coisa não tivessem sido realizadas, a coisa
poderia ter perecido e, então, nem o seu proprietário, nem o credor
hipotecário, nem qualquer outro credor conseguiriam realizar o seu direito.
Acresce que, os créditos garantidos pelo direito de retenção em regra
correspondiam a quantias de pequeno montante, podendo, por isso, ser
satisfeitos com relativa facilidade, assim se extinguindo o direito de
retenção.
Nenhuma destas razões, sublinhe-se,
justificava o direito de retenção do promitente-comprador, que tivesse obtido a
tradição da coisa objeto do contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito
resultante do não cumprimento imputável à outra parte (cfr. a al. f) do 1 do
art. 755).
Tal direito foi consagrado na sequência
das alterações de 1980 e 1986 ao regime do contrato-promessa e foi extremamente
criticado pela doutrina portuguesa dominante. As intenções do decreto-lei
236/1980, de 18 de Julho eram claras: visava-se tutelar o promitente-comprador,
de um imóvel destinado a habitação própria permanente, contra o risco de o
promitente-vendedor não cumprir o contrato, por lhe ser mais vantajoso pagar o
dobro do sinal, depois de alienar o imóvel a um terceiro por preço bem mais
elevado, em virtude da inflação desenfreada que se vivia na época. Em suma, o
legislador pretendeu desincentivar o incumprimento lucrativo do
promitente-vendedor; no entanto, acabou por atribuir uma garantia privilegiada
ao promitente-comprador, sempre que ocorresse traditio, mesmo que o objeito do
contrato não se destinasse a habitação própria permanente do promissário.
Ora, como referido, nenhuma das
circunstâncias que estavam na base do comum das situações geradoras do direito
de retenção (conexão funcional entre o crédito e a coisa e reduzido montante da
quantia em dívida) se verificava nos casos de promessa de compra e venda (com
entrega da coisa que fosse objeto do contrato prometido). Efetivamente, nada
garantia que a quantia entregue a título de sinal ao promitente-vendedor
tivesse sido empregue na construção ou valorização do imóvel. Ademais, os
créditos, derivados do incumprimento da promessa, podiam ser de valor idêntico
ao da coisa, o mesmo é dizer, ascender a um montante, em regra, bastante
elevado. Por fim, a prioridade concedida ao promitente-comprador não se
revelava justa, uma vez que, aquando da celebração do contrato, ele conhecia ou
não devia ignorar a existência de uma hipoteca que, recordamos, apenas se
constitui com a inscrição registral.
Ocorre que o decreto-lei 48/24, de 25 de
julho, veio alterar o exposto quanto ao direito de retenção que tenha por
objeto imóveis.
No sumário do referido diploma legal pode
ler-se: "Limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre
a hipoteca".
E, no preâmbulo do decreto-lei o
legislador português, além do mais, afirmou:
"[O] presente decreto-lei procede ao
reforço da hipoteca perante o direito de retenção, que, até à data, prevalecia
de forma absoluta sobre a primeira.
A posição do credor hipotecário é
reforçada através da limitação da prevalência do direito de retenção sobre a
hipoteca anteriormente registada aos casos em que a não consagração desta
solução conduz ao locupletamento do credor hipotecário à custa do titular do
direito de retenção. Estas situações ocorrem sempre que o titular do direito de
retenção realizou despesas com o imóvel com vista à sua conservação ou aumento
do seu valor.
Consequentemente, altera-se o regime legal
no sentido de condicionar a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca
anteriormente registada à circunstância de o crédito garantido assegurar o
reembolso de despesas feitas com o imóvel que tenham contribuído para o
conservar ou para aumentar o respetivo valor."
Para atingir o objetivo anunciado, teria
bastado ao legislador português alterar a redação do 2.º do art. 759.°,
nele passando a ler-se "o direito de retenção prevalece, sobre a hipoteca
ainda que esta tenha sido registada anteriormente, exceto no caso previsto no
art. 755, 1, alínea f).".
Não obstante, o legislador português
alterou a redacção do 1.° e do 2.° do art. 759, de forma bem diversa do
afirmado no referido sumário e preâmbulo transcritos, passando tal preceito
legal a estatuir:
"1 - Recaindo o direito de retenção
sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida,
tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor
hipotecário, e de, nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas
para a conservar ou aumentar o seu valor, ser pago com preferência aos demais
credores do devedor.
2 - Nos casos previstos na parte
final do número anterior, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca,
ainda que esta tenha sido registada anteriormente."
Deste modo, foi retirada a preferência ao
direito de retenção que tenha por objeto um imóvel e garanta créditos
resultantes de danos por ele causados ou assegure qualquer crédito previsto no
art. 755.°, concedendo-se, nestes casos, apenas ao retentor o poder de executar
a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário.
Portanto, em tais casos, o direito de
retenção deixou de ser um direito real de garantia.
Porquanto, atualmente, é inquestionável
que a soberania que confere um direito real de garantia não se traduz apenas no
poder de o seu titular satisfazer o seu crédito, à custa do valor da coisa
onerada, mediante recurso à venda judicial, mas sim no poder de o seu titular
promover tal venda, de modo a satisfazer o seu crédito, à custa do valor da
coisa onerada6, com preferência sobre os credores comuns, bem como sobre os
credores que disponham de uma garantia de grau inferior.
De facto, é hoje inequívoco que a
característica da preferência é conatural a um direito real de garantia. Uma
garantia real desprovida de prioridade ou de preferência é algo de
inconcebível, porque contrária à soberania própria do direito real em apreço.
Ou seja, tal como não se pode falar de um qualquer direito real destituído de
eficácia erga omnes e de um direito real de gozo desprovido de prevalência,
também não se pode falar de um direito real de garantia sem preferência ou
prioridade.
Sublinhe-se ainda, que, sendo certo que é
ao legislador que compete elencar os direitos reais - em virtude do princípio
da taxatividade -, tal como determinar o critério pelo qual se fixa o grau dos
direitos reais de garantia, também é incontroverso que não lhe cabe dar a
definição de direito real e está-lhe vedada a possibilidade de prever a
existência de um direito real destituído de eficácia erga omnes, uma vez que
tal eficácia não é mais do que um corolário da soberania que caracteriza o ius
in re.
Portanto, repisamos, através do
decreto-lei 48/24, de 25 de julho, o ordenamento jurídico português
consagrou um direito de retenção que não é garantia real - o direito de
retenção que tenha por objeto um imóvel e garanta um crédito resultante de danos
por ele causados ou um qualquer crédito previsto no art. 755 - a par com o
direito de retenção que manteve a sua natureza real inalterada: i) o que têm
por objeto móveis - quer assegure a satisfação de um crédito resultante de
despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor)
ou de danos por ela causados, quer garanta a satisfação de um crédito previsto
no art. 755; ii) o que têm por objecto imóveis se assegurar a satisfação de um
crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou
aumentar o seu valor).
Consequentemente, na hipótese de um imóvel
retido ser nomeado à penhora em ação executiva proposta por outro credor,
segundo o nosso entendimento, ao retentor, destituído de preferência, não deve
reconhecer-se o poder de recusar a entrega da coisa, porquanto tal faculdade
consubstanciaria, na prática, uma preferência indireta e especial, que
colocaria o retentor na posição de estar sempre salvaguardado no pagamento do
seu crédito, com preferência sobre todos os outros credores, por mais
privilegiados que eles fossem. De facto, reconhecer tal poder ao retentor
conduziria a que reconhecesse que a retenção, que não concede qualquer
preferência suscetível de ser feita valer diretamente na graduação dos
créditos, atribuiria uma preferência indireta, mais forte do que a direta,
visto que os outros credores só poderiam executar o imóvel retido pagando o
crédito do retentor ou caucionando o pagamento. O que, obviamente, contrariaria
clamorosamente o fim visado - mas não declarado no preâmbulo - pelo
legislador, com o decreto-lei 48/24, de 25 de julho: retirar a preferência ao
retentor de um imóvel quando o crédito não seja o de reembolso por despesas
feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor).
Acresce que o retentor de um bem imóvel,
desprovido de preferência, não pode reclamar os seus créditos em ação executiva
proposta por outrem, pois o processo de execução deixou de ter em Portugal,
desde 1961, o carácter coletivo universal que anteriormente revestia - e o
aproximava da falência ou da insolvência civil -, só admitindo a intervenção
dos credores cujos créditos, mesmo que ainda não vencidos, estejam assegurados
por uma garantia real anterior sobre os bens penhorados na execução e que
disponham de título executivo (art. 788 do CPC português)7.
Não se extinguido o direito de retenção
- e muito menos o crédito do retentor - em virtude da entrega não
voluntária da coisa, ocorrida em virtude da penhora efetuada em ação executiva
proposta por outro credor, restará ao retentor, desprovido de preferência, a
possibilidade de intentar nova ação executiva e nomear à penhora o bem até ali
retido, para, após a sustação da execução por si movida, reclamar o seu
crédito no processo mais antigo (art. 792)8 e, assim, tentar satisfazê-lo.
Isto, claro está, se o imóvel em causa tiver "forças" para suportar a
satisfação dos créditos dos titulares das garantias reais feitas valer na ação
executiva e ainda o crédito do retentor.
Por fim, cumpre dar resposta à questão de
saber que poderes pretendeu o legislador atribuir ao titular do novo direito de
retenção, destituído de preferência, ao afirmar que este pode "executar a
coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário".
Na nossa perspetiva, equiparando o
legislador o retentor ao credor hipotecário, outros bens só poderão ser
nomeados à penhora se o valor do imóvel retido se revelar insuficiente para a
satisfação da dívida exequenda (penhorabilidade subsidiária). De facto, esta é
a solução imposta pelo 1.º do art. 752 do CPC: "[e]xecutando-se
dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora
inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros
quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da
execução".
Intentando o retentor do bem imóvel,
desprovido de preferência, ação executiva, beneficiará apenas da preferência
concedida ao exequente em virtude da penhora (vide, art. 822, 1: "o
exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer
outro credor que não tenha garantia real anterior"), não sendo a sua
posição muito diversa da posição de um qualquer credor comum, uma vez que
também este pode dar início ao processo de execução e nomear à penhora
quaisquer bens que façam parte do património do devedor que não sejam
impenhoráveis, apenas devendo o credor comum obedecer ao princípio da
proporcionalidade e à regra da adequação9-10.
Caso o retentor de um imóvel, destituído
de preferência - por o seu crédito não resultar de despesas feitas por
causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor) -, intente a ação
executiva, os credores com direitos reais de garantia sobre os bens penhorados,
registados em data anterior à do registo da penhora, poderão reclamar os seus
créditos - após serem convocados (arts. 786, b), e 788, 1, ambos do
CPC) - e ser pagos, após a verificação e graduação dos créditos, com preferência
ao retentor exequente (art. 822 do CC e 796, 2, do CPC), que só terá a seu
favor a preferência resultante da penhora.
Acrescente-se, ainda, que, segundo o nosso
entendimento, projetando o retentor, desprovido de preferência - por o seu
crédito não resultar de despesas feitas por causa do imóvel (para o conservar
ou aumentar o seu valor), intentar ação executiva, não verá a sua pretensão
obstaculizada pelo facto de o devedor haver alienado ou onerado com um direito
real de gozo a coisa retida, pois, de acordo com a letra da lei, o retentor:
"pode executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor
hipotecário"11. Nesta hipótese, a ação executiva apenas há-de ser movida
contra o terceiro adquirente (cfr. 2 do art. 735 do CPC português).
Ora, assim sendo, o direito de retenção
sobre imóvel, agora desprovido de preferência - por o crédito assegurado
não resultar de despesas feitas por causa do imóvel (para o conservar ou
aumentar o seu valor) -, continua a beneficiar de sequela e a prevalecer
perante um direito real de gozo posteriormente constituído.
Fonte: Migalhas