A LGPD possui uma amplitude
considerável perante as instituições de ensino superior, motivo pelo qual é
recomendável que as entidades iniciem as adequações à lei por meio de uma
análise sistemática de todos os dados que estão ao seu dispor, o mapeamento de
todos e a criação de estratégias de tratamento de cada um, levando-se em
consideração às exceções previstas em lei.
Certa vez, o escritor inglês
William McFee, que além de escritor também era engenheiro naval no início do
século passado, cravou uma frase que seria o Norte de um aforismo político
considerável: “O mundo não está interessado nos temporais que você encontrou.
Ele quer saber se você trouxe o navio. ” Amiúde ao seu devido contexto, resta
claro que aforismo acima é perfeitamente cabível na implantação da chamada Lei
Geral de Proteção de Dados (LGDP), em especial perante as instituições de
ensino superior privadas.
Como é cediço, a lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, alterada pela MP 869, de 27 de dezembro de 2018, a qual foi convertida
na lei 13.853, de 8 de julho de 2019, que instituiu a chamada
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), estabeleceu um regramento geral para as
operações de tratamento de dados pessoais, seja por meio físico ou digital,
realizadas por intermédio de pessoas jurídicas e naturais.
A LGPD objetiva mitigar os riscos
relacionados ao tratamento indevido e/ou abusivo de dados e, ao mesmo tempo,
viabilizar que novos negócios e tecnologias sejam desenvolvidos em um ambiente
de segurança jurídica, com base em importantes fundamentos, tais como: respeito
à privacidade; à autodeterminação informativa; à liberdade de expressão, de
informação, de comunicação e de opinião; à inviolabilidade da intimidade, da
honra e da imagem; ao desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; à
livre iniciativa, livre concorrência e defesa do consumidor e aos direitos
humanos liberdade e dignidade das pessoas.
A aplicação da LGPD impactará em
todas as organizações nacionais ou estrangeiras que ofertam produtos e/ou
serviços para o mercado nacional ou que monitorem o comportamento de titulares
de dados localizados no Brasil, independentemente de sua nacionalidade ou local
de residência. Considerando a sua amplitude, resta evidente que a LGPD também
impactará de maneira contundente nas instituições de ensino superior em razão
dos serviços que estas prestam, pois as IES são detentoras de dados importantes
de alunos e docentes, além de dados acadêmicos que possuem tratamento
diferenciado.
De maneira geral, a LGPD possui
um escopo amplo, dentre os quais: estabelecer requisitos claros para o
tratamento de dados pessoais, inclusive com acesso facilitado para aqueles que
são titulares dos dados; estabelecer requisitos mais rígidos para o tratamento
de dados pessoais tidos como sensíveis; estabelecer requisitos para o
tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes; estabelecer regras
para o término do tratamento de dados; descrever todos os direitos do titular
dos dados; disciplinar regras para o tratamento de dados pelo poder público;
estabelecer regras sobre a transferência internacional de dados; disciplinar a
responsabilidade sobre o exercício de atividade de tratamento de dados pessoais
e regras de ressarcimento de danos; sugerir a adoção de medidas de segurança,
sigilo de dados, boas práticas e governança no tratamento dos dados; e,
estabelecer a fiscalização e sanções administrativas, as quais podem ser
mitigadas com a adoção de boas práticas de mitigação e integridade.
A Lei Geral de Proteção de Dados
atribui ao titular de dados pessoais o direito de obter informações claras,
adequadas e ostensivas a respeito do tratamento de seus dados. Importa
esclarecer que tratamento de dados engloba a coleta, produção, recepção,
classificação, utilização, o acesso, a reprodução, transmissão, distribuição,
processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle
da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração de
dados pessoais. De acordo com a lei, as informações sobre o tratamento de dados
pessoais devem ser claras, objetivas, facilmente compreensíveis e acessíveis ao
titular durante todo o período em que o tratamento ocorre.
Amiúde à clara extensão da LGPD,
sendo certa que sua abrangência inclui as pessoas jurídicas de todos os
segmentos econômicos no país, no que tange às instituições de ensino superior
há uma exceção explícita na lei, qual seja: a mesma não se aplica ao tratamento
de dados pessoais realizados para fins exclusivamente acadêmicos, nos termos
previstos no art. 4º, II, b, da LGPD, com importante alteração dada pela MP
869, de 2018, mormente convertida na lei 13.853, de 8 de julho de 2019.
Sendo assim, é imprescindível
que, no decorrer da implantação da LGPD às suas respectivas realidades, as
instituições de ensino superior façam uma análise sobre a conformidade dos
dados pessoais que sejam meramente acadêmicos e os outros dados pessoais de
cunho diverso. Essa análise implicará na economia de tempo e de recursos
incidentes sobre as operações de tratamento de dados pessoais que as
instituições de ensino inevitavelmente terão que realizar.
Os dados pessoais de alunos e docentes,
não necessariamente vinculados às atividades acadêmicas, teriam duas
implicações diretas para as instituições de ensino superior: uma de ordem
consumerista e outra de ordem trabalhista. A não conformidade no tratamento de
dados pessoais dos alunos, dados esses não necessariamente acadêmicos, poderia
implicar em uma demanda de ordem consumerista, uma vez que haveria a
necessidade de um consentimento expresso do titular do dado (o aluno) para que
esse dado pudesse ser exposto ou não. Da mesma forma, a não conformidade no
tratamento de dados pessoais dos docentes, dados esses não acadêmicos, poderia
implicar em uma demanda de ordem trabalhista, uma vez que também haveria a
necessidade do consentimento expresso do titular do dado (professor) para que esse
dado pudesse ser exposto ou não. Essa é uma situação que pode levar a
discussões judiciais, sob o ponto de vista consumerista e trabalhista, para um
patamar até então desconhecido.
Aliás, diga-se de passagem, a
própria LGPD estabelece de maneira explícita que o titular dos dados pessoais
tem o direito de peticionar diretamente para a autoridade nacional em caso de
descumprimento da norma, podendo exercer tal direito também perante os órgãos
de defesa do consumidor. Essa possibilidade pode trazer à tona novas situações
relacionadas ao direito do consumidor, o qual granjeará um novo patamar em seus
direitos.
Em outras palavras, as
instituições de ensino superior serão obrigadas a resguardar o tratamento dos
dados de alunos e docentes com base nas perspectivas acima, sendo que as
informações sobre o tratamento de dados pessoais devem ser claras, objetivas,
facilmente compreensíveis e acessíveis ao titular durante todo o período em que
o tratamento ocorrer. Considerando os direitos dos titulares dos dados e a ressalvada
dada pela lei em razão dos dados pessoais acadêmicos, a pergunta que se faz é a
seguinte: quais seriam os dados pessoais que a instituição de ensino é obrigada
a fazer um tratamento específico? Necessariamente, seriam os dados pessoais que
estariam atrelados a conteúdos de natureza econômica, social ou enquadrados
pela lei como dados pessoais sensíveis.
Os dados pessoais sensíveis, de
acordo com a LGPD, são aqueles relacionados à origem racial ou étnica,
convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de
caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida
sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
Sendo assim, todos os dados pessoais sensíveis que tenham relações com os dados
acadêmicos devem ser objeto de análise para que possam ser apartados e que
sejam estabelecidos os tratamentos devidos para que a instituição de ensino não
tenha problemas na utilização desses dados.
Dentro desse contexto, a
instituição terá que estabelecer procedimentos de integridade sobre como será
realizado o tratamento dos dados pessoais de alunos e docentes relacionados com
suas atividades, como por exemplo:
- O tratamento de dados pessoais
referentes à condição socioeconômica dos beneficiários das políticas públicas
federais, como o Fies e Prouni;
- O tratamento de dados pessoais
referentes à política de descontos adotada pela IES;
- Criação de mecanismos
(tecnológicos) de acesso facilitado de dados;
- Informação aos discentes sobre
quais dados ele têm acesso, bem como informar o fim do prazo para tratamento
dos respectivos dados; e,
- Criação de mecanismos sobre o
consentimento inequívoco para docentes e discentes em relação à utilização dos
seus dados pessoais pela instituição, a exemplo da necessidade de autorização
expressa para a participação do docente em propaganda institucional.
Os exemplos acima demonstram que
as instituições de ensino superior devem fazer importantes adequações às
exigências da LGPD, mas ponderando com as exceções previstas em lei. As
adequações perpassam também nas exigências regulatórias do Ministério da
Educação, a exemplo da portaria MEC 1.095, de 25 de outubro de 2018, que
disciplina a expedição e o registro de diplomas de cursos superiores de
graduação. A referida Portaria estabelece, por exemplo, a obrigatoriedade de
que as IES mantenham banco de informações de registro de diplomas diretamente
nos seus respectivos sítios eletrônicos, os quais poderão ser objeto de
consulta pública. Nesse caso, as IES terão que fazer, dentro de seus
procedimentos internos, um tratamento específico que discipline o conhecimento
do aluno sobre essa divulgação. Tal tratamento também deverá ser objeto de
previsão para o chamado “Diploma Digital”, criado por meio da portaria MEC 330, de 5 de abril de 2018 e regulado
pela portaria MEC 554, de 11 de março de 2019, e que entrará em
vigor a partir de 2021.
Como se pode perceber, a LGPD
possui uma amplitude considerável perante as instituições de ensino superior,
motivo pelo qual é recomendável que as entidades iniciem as adequações à lei
por meio de uma análise sistemática de todos os dados que estão ao seu dispor,
o mapeamento de todos e a criação de estratégias de tratamento de cada um,
levando-se em consideração às exceções previstas em lei. Ato contínuo, será
necessário fazer as adequações primeiramente no contrato de prestação de
serviço da entidade para resguardar os dados que serão objetos de tratamento
específico.
A LGPD é uma realidade inexorável
em nosso país e, parafraseando o escritor inglês William McFee citado
inicialmente, a referida legislação não está interessada nos temporais que a
instituição está passando, ela quer saber se a entidade está com o navio pronto
para ser utilizado. Desde a aprovação da LGPD no Brasil, as IES públicas e
privadas buscam estabelecer estratégias eficazes para a conformidade. O desafio
é equilibrar a conformidade e a proteção da privacidade com a sustentação do
próprio negócio e com as inovações. Para a busca de conformidade serão
necessárias muitas mudanças operacionais e de processos de trabalho em diversas
áreas das instituições de ensino, além de investimentos em capacitação e
implementação de novas tecnologias.
*Daniel Cavalcante é sócio advogado do escritório Covac –
Sociedade de Advogados.
Fonte: Migalhas