Contornos sobre a flexibilização da impenhorabilidade por abuso de
direito e violação ao princípio da boa-fé.
Antes de adentrarmos no tema
central, mais especificamente em relação às situações em que o bem de família
poderá sofrer os efeitos da penhora, é necessário tecer algumas considerações a
respeito deste instituto. O que é o bem de família? Quais são os fundamentos
legais e constitucionais da proteção ao bem de família?
Pois bem. Em suma, bem de família
consiste no “imóvel utilizado como residência da entidade familiar, decorrente
de casamento, união estável, entidade monoparental, ou entidade de outra
origem, protegido por previsão legal” (TARTUCE, Flávio. Manual de direito
civil: volume único 7. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017).
Para Paulo Lobo, “é o imóvel
destinado a moradia da família do devedor, com os bens móveis que o guarnecem,
que não pode ser objeto de penhora judicial para pagamento de dívida. Tem por objetivo
proteger os membros da família, que nele vivem da constrição decorrente da
responsabilidade patrimonial, que todos os bens econômicos do devedor ficam
submetidos, os quais, na execução, podem ser judicialmente alienados a
terceiros ou adjudicados ao credor” (Direito Civil: Famílias. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014).
Trata-se, portanto, da
propriedade imóvel utilizada pela família para fins de moradia permanente,
sendo que para incidência da regra de impenhorabilidade conforme prevista em
lei, é indispensável que a entidade familiar resida no local ou dependa do seu
aluguel para manutenção de sua subsistência.
É de rigor destacar que o
Superior Tribunal de Justiça ampliou o conceito de bem de família, para
abranger, também, “o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e
viúvas”, entendimento cristalizado no enunciado de súmula n. 364.
São duas as espécies de bem de
família: o bem de família legal, decorrente da própria condição de se tratar de
única moradia do núcleo familiar, ou seja, possui essa natureza
independentemente de sua inscrição no cartório; e o bem de família convencional
ou voluntário, que é aquele oriundo do ato de vontade da entidade familiar,
instituído mediante a formalização do registro no cartório de imóveis.
A impenhorabilidade do bem de
família legal possui previsão no art. 1º da Lei n. 8.009/1990, o qual
disciplina que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar,
é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal,
previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou
filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses
previstas nesta lei” (art. 3º da Lei n. 8.009/90). Dentro das regras de
proteção contra a penhora compreende-se, ainda, “o imóvel sobre o qual se
assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e
todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que
guarnecem a casa, desde que quitados”.
Já a impenhorabilidade
convencional ou voluntária encontra amparo no art. 1.711 do Código Civil.
Referido dispositivo estabelece que “podem os cônjuges, ou a entidade familiar,
mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para
instituir bem de família”. A parte final do dispositivo acrescenta a ressalva
de que o valor do bem convencionado não poderá ultrapassar um terço do
patrimônio líquido existente no momento do ajuste. Além disso, a sua alienação
apenas poderá se efetivar com a autorização dos interessados, conforme
disciplina o art. 1.717 do Código Civil.
Dito isto, é preciso delimitar o
âmbito de incidência das regras de impenhorabilidade, já que em determinadas
situações o devedor se utiliza da proteção legal conferida ao imóvel para firmar
negócios jurídicos economicamente inviáveis e oferecem o referido bem como
garantia fiduciária, como por exemplo, nos contratos de financiamento.
Assim como nos casos em que o
devedor investe grande parte do seu patrimônio em imóvel excessivamente caro e
luxuoso, com o intuito de obstar eventual penhora, a impenhorabilidade vem
sendo afastada pelo STJ em determinadas situações em que as condutas dos
devedores contrariam a boa-fé, princípio basilar que deve permear todos os
negócios jurídicos.
Em relação à ocorrência de fraude
à execução, por exemplo, o Tribunal já havia firmado o entendimento no sentido
de ser possível desconstituir a impenhorabilidade. Embora a Corte Superior
tenha conferido a mais ampla proteção ao bem de família, sempre atribuindo a
interpretação mais favorável ao art. 3º da Lei n. 8.009/90, na ocasião do
julgamento do REsp n. 1.494.394/SP esclareceu que “essa proteção não pode ser
utilizada para abarcar atos diversos daqueles visados pela Lei 8.009/1990,
tornando imperioso o afastamento da proteção quando verificada a existência de
atos fraudulentos ou constatado o abuso de direito pelo devedor que se furta ao
adimplemento da sua dívida, sendo inviável a interpretação da norma sem a
observância do princípio da boa-fé”.
Mais recentemente, vemos dois
julgados que reafirmam a compreensão acima, ou seja, para afastar a
impenhorabilidade em decorrência de oferecimento do bem de família como
garantia em contratos de financiamento e empréstimos com instituições
financeiras.
Trata-se do REsp n. 1.560.562/SC
(julgado em 02/04/2019), de relatoria da ministra Nancy Andrighi, o qual
consignou que “não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente
residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não
encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão” e do REsp n. 1.559.348/DF
(julgado em 18/06/2019), de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, no qual
se construiu similar interpretação. Neste último, o magistrado se convenceu de
que “o abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário
devem ser reprimidos, tornando ineficaz a norma protetiva, que não pode
conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o
ordenamento jurídico”.
Como se vê, há uma tendência da
jurisprudência de flexibilizar a proteção ao bem de família quando restar
evidente que o devedor abusou do seu direito ou empreendeu medida que contraria
a cláusula geral da boa-fé objetiva contratual.
No caso dos empréstimos,
financiamentos e outros contratos similares, parece não haver dúvidas de que a
indicação do bem de família como garantia fiduciária implica na desconstituição
da impenhorabilidade deste bem. Pensar de modo contrário é o mesmo que avalizar
a má-fé e transformar a proteção legal em um escudo em favor de planejadas
ilegalidades.
Mas nada é tão simples quanto
parece, pois sabemos que na prática os casos concretos levados ao Judiciário
carregam contorno tão particulares que a lei ou os entendimentos construídos
jurisprudencialmente devem ser analisados com destacada atenção, com os olhos
sempre voltados ao direito constitucional – fundamental – à moradia.
Assim, a título de
exemplificação, pode ocorrer de um devedor ter oferecido como garantia, na
época do ajuste contratual (financiamento bancário), um determinado bem imóvel
X, o qual naquele momento não era utilizado para fins de moradia e não era o
único imóvel da família, pois possuía, também, os imóveis Y e Z. Suponhamos que
após alguns anos, em virtude de crise financeira, a família se mudou para o
imóvel X, onde os custos de manutenção eram bem inferiores aos demais. Com o
tempo, a crise se agravou e os imóveis Y e Z precisaram ser alienados para
pagar dívidas, restando apenas o imóvel X, local onde a família passou a
residir. Ocorre que a situação financeira ficou tão difícil que o devedor
começou a atrasar as parcelas do financiamento até não conseguir mais efetuar
os pagamentos mensais, levando a instituição financeira a iniciar um processo
de execução, requerendo a penhora do imóvel X.
No hipotético cenário acima
descrito, restou claro que o bem imóvel foi dado em garantia no contrato
bancário por livre vontade da parte contratante, mas, no decorrer do contrato,
se tornou o seu único bem imóvel e, ainda, o local de moradia sua e de sua
família. A pergunta a ser feita é: seria razoável permitir a penhora do único
imóvel da família, atualmente utilizado para fins de moradia?
Nesse caso, é possível observar
algumas peculiaridades que exigem uma análise mais acurada por parte do julgador.
Deve-se analisar, em primeiro lugar, se, de fato, o imóvel X é o único bem
imóvel do devedor e se está sendo utilizado como residência da entidade
familiar. Outra questão que deverá ser avaliada é se as alienações dos demais
imóveis foram estrategicamente planejadas e realizadas com o intuito de impedir
a penhora do imóvel X, sob o pálio da impenhorabilidade do bem de família.
Assim, o ponto de partida é a
análise da narrativa fática e dos documentos apresentados, dos quais se
permitirá extrair uma visão geral do contexto situacional da entidade familiar
no aspecto da suposta crise econômica enfrentada e, por conseguinte, a
inocorrência de abuso de direito ou má-fé do devedor.
O direito fundamental à moradia
prevalece, ao menos em regra, sobre o direito ao crédito, sobre o direito à
livre iniciativa, bem como sobre outros de caráter meramente patrimonial. O seu
núcleo essencial reflete o espaço mínimo existencial destinado a assegurar uma
subsistência digna ao indivíduo, motivo pelo qual não deverá ser sacrificado
descriteriosamente sob o argumento de que o devedor se encontrava no pleno
exercício da sua autonomia de vontade.
Não se pode concluir, portanto,
que a mera indicação de determinado bem como garantia em um contrato seja
suficiente para desconstituir a regra da impenhorabilidade do bem de família.
Há limites significativos para a restrição (ou renúncia) de direitos
fundamentais. Por isso, a eficácia da norma protetiva poderá ser excluída
apenas excepcionalmente, repise-se, quando identificados o abuso do direito de
propriedade, a fraude ou a má-fé do devedor, conforme o entendimento gravado
pelo Superior Tribunal de Justiça.
*Thomas Ubirajara Caldas de Arruda é advogado licenciado, assessor
jurídico na Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso e especialista
em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Fonte: Jota