No início de 2019, o Deputado
Federal Luiz Lima (PSL/RJ) apresentou o Projeto de Lei 510, que pretendia
permitir o divórcio ou rompimento da união estável, a pedido da ofendida, nos
casos de violência doméstica contra a mulher.
A proposta foi originalmente
apresentada de modo bastante enxuto. Através de um novo dispositivo a ser
introduzido à Lei Maria da Penha, o art. 19-A, conferia-se à mulher vítima de
violência, para além das medidas de urgência já previstas, a possibilidade de
requerer ao juiz a dissolução da união conjugal.
O texto foi amplamente
transformado e aprimorado em ambas as Casas do Congresso Nacional. Na Câmara,
sob relatoria da Deputada Erika Kokay (PT/DF), foram acrescidas as disposições,
de que se tratará detidamente adiante, a respeito da necessidade de se informar
a ofendida da possibilidade de encaminhamento à assistência judiciária para
eventual ajuizamento da ação de divórcio, da faculdade de sua propositura no
juizado de violência doméstica contra a mulher e da preferência na tramitação.
No Senado Federal, o projeto
ganhou seus principais contornos em virtude da apresentação de um substitutivo
proposto pelo Senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE), amparado em parecer de
lavra de um dos subscritores do presente artigo, igualmente firmado pela
Professora Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões. O
substitutivo foi responsável por:
a) incorporar a separação [1] e
também a anulação do casamento no rol de possibilidades de que disporá a mulher
vítima de violência doméstica;
b) apresentar a opção de ajuizamento tanto no juizado especial de violência
doméstica e familiar contra a mulher como no juízo da vara de família;
c) modificar o Código de Processo Civil para acrescentar novo foro para o
ajuizamento das ações de dissolução de união conjugal;
d) prever a intervenção obrigatória do Ministério Público nas ações de família
em que figure vítima de violência doméstica e familiar.
Com a aprovação do substitutivo
pela Câmara, o texto foi enviado para sanção presidencial no dia
10 de outubro de 2019. Tais regras integram o novo procedimento protetivo de
dissolução das uniões conjugais, estabelecendo especialização procedimental em
relação às ações de direito de família que visam a promover a dissolução do
casamento ou da união estável.
A especialização do procedimento
dá-se em virtude das peculiaridades de algumas espécies de pretensão de direito
material, aptas a justificar, nos limites fixados pelo legislador, as
orientações específicas à dispensa de tratamento procedimental diferenciado.
Neste sentido, a situação de hipossuficiência da mulher vítima de violência
doméstica justifica o encaminhamento dela à “assistência judiciária, quando for
o caso, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial, de
divórcio, de anulação do casamento ou de dissolução de união estável perante o
juízo competente” (PL 510/2019, art. 9º, § 2º, III).
A ruptura de fato decorrente da
violência doméstica pode, eventualmente, privar a mulher de recursos
financeiros necessários ao custeio de uma ação judicial de divórcio ou
separação judicial, que demanda o pagamento de custas judiciais e honorários
advocatícios.
Como é cediço, é suficiente a alegação
de insuficiência de recursos na petição inicial, presumindo-se verdadeira a
alegação de hipossuficiência em favor de pessoa natural na sistemática do
Código de Processo Civil vigente (art. 99, § 3º). Ademais, caberá à
autoridade policial informar a mulher ofendida de tal direito, nos termos do
inciso V do art. 11 do PL 510/2019: “informar à ofendida os direitos a ela
conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência
judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de
separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de
união estável”.
Em razão da vulnerabilidade da
mulher vítima de violência doméstica e familiar, a ação de divórcio, separação,
anulação de casamento e reconhecimento e dissolução da união estável deverá ser
proposta no juízo do domicílio da vítima, em virtude da inserção da alínea “d’
entre as hipóteses do inciso I do art. 53 do Código de Processo Civil: “É
competente o foro: I - para a ação de divórcio, separação, anulação de
casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável: d) de domicílio da
vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”.
Sabe-se que em razão da
consagração da igualdade de deveres entre homem e mulher no exercício dos
deveres conjugais, o legislador optou por eliminar o antigo “privilégio” de
foro da mulher nas ações de divórcio, separação e anulação do casamento.
A nova regra, contudo, é
perfeitamente justificável em razão da vulnerabilidade da mulher atingida pela
violência doméstica e familiar. Trata-se de medida semelhante à prevista em
relação ao alimentando, que também poderá propor ação de alimentos no foro de
seu domicílio ou residência por ser reputado vulnerável, conforme prescreve o
inciso II do art. 53 do Código de Processo Civil.
É também a vulnerabilidade em
razão da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher que
justifica a intervenção obrigatória do Ministério Público nas ações de família
em que figure como parte a ofendida, conforme parágrafo único acrescido ao art.
698 do Código de Processo Civil: “Parágrafo único. O Ministério Público
intervirá, quando não for parte, nas ações de família em que figure como parte
vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”.
Some-se ainda o fato de que a
vulnerabilidade da vítima de violência doméstica também justificará a
prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, dos procedimentos
judiciais “em que figure como parte a vítima de violência doméstica e familiar,
nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”, como
passará a constar da redação do inciso III acrescido ao art. 1.048 do Código de
Processo Civil em virtude do PL 510/2019. Por fim, mais importante do que a
modificação do texto da lei deve ser a atitude do magistrado em relação à
mulher vítima de violência no “julgar com perspectiva de gênero”.
Exercer a atividade judicante
nesses termos significa dizer que os magistrados não podem decidir tais
questões como tradicionalmente procedem quando estão diante de litígios entre
dois homens ou entre duas empresas. Assim, se ao julgar uma situação específica
de violência sexual contra uma mulher, que a suporta há pelo menos seis anos,
um determinado Tribunal considera que o fato de não ter denunciado imediatamente
tais violações significa que consentiu com elas, abstraindo as especiais
características da vítima de violência, tem-se como resultado um julgamento
injusto que evidencia a insuficiência das leis e a falta de uma adequada
formação sobre questões de gênero.
A decisão em questão não será
injusta apenas para as pessoas envolvidas no caso concreto, visto que termina
por contribuir ao aumento da violência contra as mulheres.
Em outras palavras, esse cenário
de ineficiência do Poder Judiciário favorece a violência doméstica e familiar
contra a mulher ao passar ao público a mensagem de que não existem reais
evidências da vontade e da ação do Estado para prevenir, punir e reprimir tais
atos em nome da sociedade civil.
*Esta coluna é produzida pelos
membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP,
Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG,
UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)
[1] Recorde-se, a esse
respeito, decisão da Quarta Turma do STJ em 2017, em processo correndo em
sigilo, no sentido da subsistência da separação no ordenamento jurídico
brasileiro. Aguarda-se a manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre a
matéria no seio do Recurso Extraordinário 1167478, cuja repercussão geral foi
reconhecida em votação unânime.
*Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, professor da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade de Pernambuco (UPE)
e doutor em Direito pela UFPE.
*Caio Morau é doutorando e mestre em Direito Civil pela
Universidade de São Paulo (USP), professor da Escola Superior de Direito e
assessor jurídico no Senado Federal.
Fonte: ConJur