Publicada no dia 29 de outubro de
2019, a Lei 13.894/19 traz alterações na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e
no Código de Processo Civil, com a clara intenção de facilitar a dissolução da
sociedade conjugal de que faça parte vítima de violência doméstica. São
modificações bastante práticas e relevantes.
A primeira novidade diz respeito
à informação da existência e, em havendo interesse, ao encaminhamento da
vítima, pela autoridade policial e pelo juiz, ao serviço de assistência
judiciária, com vistas a ajuizar ação de divórcio, separação judicial, anulação
de casamento ou extinção de união estável (artigos 11, V, 9º, parágrafo 2º,
III, e 18, II, da Lei 13.340/06, respectivamente).
Art. 11. No atendimento à mulher
em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá,
entre outras providências:
V - informar à ofendida os
direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de
assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente
da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de
dissolução de união estável.
Art. 9º A assistência à mulher em
situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e
conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência
Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre
outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o
caso.
§ 2º O juiz assegurará à mulher
em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade
física e psicológica:
III - encaminhamento à
assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para eventual ajuizamento
da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução
de união estável perante o juízo competente.
Art. 18. Recebido o expediente
com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas:
II - determinar o encaminhamento
da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso, inclusive
para o ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de
casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente.
Cabe, aqui, relembrar que a
assistência jurídica integral e gratuita é direito fundamental assegurado pelo
artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal. Aí, naturalmente, está incluída a
assistência judiciária, ao lado de toda orientação jurídica e promoção de
atividades extrajudiciais, consensuais ou não.
Trata-se de incumbência típica da
Defensoria Pública (artigo 134 da Constituição), apesar de, mormente quando
instalada de forma insuficiente em determinada localidade, complementada pela
advocacia dativa e, independentemente de carência estrutural, pela advocacia
pro bono. Parece, contudo, que o legislador quis dizer que será cientificada a
vítima da violência acerca da disponibilização, pelo Estado, de serviço apto a
promover o pedido de separação (em sentido amplo), consistente na atuação
defensorial.
Além disso, em que pese a menção
à atribuição do magistrado — para encaminhar a vítima —, é plenamente possível
e recomendável que também a autoridade policial e sua equipe de atendimento
prontamente anunciem essa via aberta, como previsto no artigo 11, mas também
elucidem como proceder até o órgão de atuação com atribuição.
Esse estímulo administrativo,
embora elogiável no tocante à educação em direitos, não pode ser lido de forma
isolada. Pretender que a solução para a violência doméstica, verdadeira mazela
social que deságua no Judiciário em níveis metonímicos, passe por ajuizamento
de ações de dissolução de vínculos de inopino é impensável. Necessita-se
garantir, mais do que nunca, o apoio psicossocial esperado pelo legislador para
tais vítimas, permitindo uma reflexão profunda a respeito de passo tão
decisivo.
Quanto a essas demandas, o
Legislativo pretendia alterar sua competência originária de juízo,
importando-as para os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, salvo no tocante à partilha de bens. Felizmente, sobreveio veto
presidencial nesse ponto, tendo sido percebido que a sobrecarga de trabalho
desnaturaria, por completo, a natureza de tais órgãos judiciários,
essencialmente voltados à apuração criminal[1].
Para além disso, foi alterado o
diploma processual geral, em três pontos.
O primeiro diz respeito à
competência territorial para as ações objeto da lei (divórcio, separação
judicial, anulação de casamento e extinção de união estável). Surge uma quarta
alínea no primeiro inciso no artigo 53, prevendo a competência do foro do
domicílio da vítima de violência doméstica e familiar.
Art. 53. É competente o foro:
I - para a ação de divórcio,
separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união
estável:
a) de domicílio do guardião de
filho incapaz;
b) do último domicílio do casal,
caso não haja filho incapaz;
c) de domicílio do réu, se
nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal;
d) de domicílio da vítima de
violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006 (Lei Maria da Penha).
Curioso é que, quanto aos incisos
anteriores, a doutrina entende se tratar de foros subsidiários – posição
consagrada no enunciado 108 da II Jornada de Direito Processual Civil do
CJF/STJ[2]. Agora, aparece uma última possibilidade que não pode guardar elo
com as outras, sob pena de se tornar inútil.
Há um conflito entre a prioridade
de tutela dos interesses dos filhos incapazes e de proteção da vítima de
violência doméstica, quando mulher, ante a remissão à Lei 11.340/06. Duas são
as conclusões possíveis: ou o novo inciso é prioritária em relação a todos os
demais, impondo ser lido como se fosse o novo inciso “a”, ou foi criado um foro
alternativo, à escolha da mulher vítima de violência. Na prática, a solução
será a mesma: em querendo, a ação correrá em seu domicílio; caso contrário,
mantém-se a hierarquia já existente.
Prossegue o legislador criando
hipótese de atuação compulsória do Ministério Público, nas ações de família.
Art. 698. Nas ações de família, o
Ministério Público somente intervirá quando houver interesse de incapaz e
deverá ser ouvido previamente à homologação de acordo.
Parágrafo único. O Ministério
Público intervirá, quando não for parte, nas ações de família em que figure
como parte vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº
11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
Na redação originária, o parquet
apenas interviria quando existisse interesse de incapaz, algo acidental nas
ações de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, mas
frequente nas demandas de guarda, visitação, filiação e alimentos – rol
legalmente estatuído de ações de família[3]. Doravante, o Ministério Público se
fará presente como fiscal, quando a vítima de violência doméstica for parte
processual.
Por fim, a nova norma modifica o
Código Fux, passando a prever prioridade na tramitação de processos em que for
parte vítima de violência doméstica e familiar.
Art. 1.048. Terão prioridade de
tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os procedimentos judiciais:
III - em que figure como parte a
vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
Uma leitura seca desses dois
últimos comandos soa incompatível com a própria Lei 13.894/19, indicando que a
maior celeridade na tramitação e a atuação ministerial não se limitariam às
ações de divórcio, anulação de casamento, separação e extinção de união
estável.
É questionável, porém, a
constitucionalidade dessa interpretação, ferindo-se a isonomia formal sem
sustentáculo substancial. Naturalmente, é justo que a vítima de violência
praticada por quem menos se espera receba resposta jurisdicional de maneira
abreviada quanto a aspectos causais desses danos, bem como que receba o reforço
processual advindo da presença do Ministério Público. Quanto a outras demandas,
sem relação com tal circunstância, como demais pretensões cíveis e
consumeristas, esvazia-se o fundamento proporcional e razoável da
diferenciação.
[1] Ouvidos, os Ministérios da
Justiça e Segurança Pública e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
manifestaram-se pelo veto aos seguintes dispositivos:
Caput e parágrafos 1° e 2º do
artigo 14-A da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, inseridos pelo artigo 1º do
projeto de lei
“Art. 14-A. A ofendida tem a
opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
§ 1º Exclui-se da competência dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a pretensão
relacionada à partilha de bens.
§ 2º Iniciada a situação de
violência doméstica e familiar após o ajuizamento da ação de divórcio ou de
dissolução de união estável, a ação terá preferência no juízo onde estiver.”
Razões do veto
“Os dispositivos propostos, ao
permitirem e regularem a possibilidade da propositura de ação de divórcio ou de
dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher, guardam incompatibilidade com o objetivo desses Juizados,
especialmente no que tange à ágil tramitação das medidas protetivas de urgência
previstas na Lei Maria da Penha. Portanto, a alteração proposta é contrária ao
interesse público, pois compromete alguns dos princípios que regem a atuação
desses juizados, tais como a celeridade, simplicidade, informalidade e economia
processual, tendo em vista os inúmeros desdobramentos naturais às ações de
Direito de Família.”
[2] Enunciado 108: A competência
prevista nas alíneas do art. 53, I, do CPC não é de foros concorrentes, mas de
foros subsidiários.
[3] Art. 693. As normas deste
Capítulo aplicam-se aos processos contenciosos de divórcio, separação,
reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação.
Parágrafo único. A ação de
alimentos e a que versar sobre interesse de criança ou de adolescente
observarão o procedimento previsto em legislação específica, aplicando-se, no
que couber, as disposições deste Capítulo.
*José Roberto Mello Porto é defensor público do Rio de Janeiro,
presidente da Comissão de Estudos em Processo Civil da seccional do Rio de
Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, doutorando e mestre em Direito
Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Fonte: ConJur