Nos últimos dias 16 a 18 de
outubro deste ano de 2019 realizou-se em Belo Horizonte o 12º Congresso
Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do Instituto Brasileiro
de Direito de Família (IBDFAM), com cerca de 1.500 participantes. Mais uma vez
tive a oportunidade de palestrar, tratando do tema da mitigação ou
relativização - e não eliminação -, das formalidades testamentárias. A essência
da exposição foi para responder à seguinte indagação: é possível fazer um
testamento sem as formalidades legais estritas?
A minha resposta, como não
poderia ser diferente, foi negativa, sendo certo que o afastamento de todas as
formalidades afastaria a essência do ato de última vontade, notadamente a sua
finalidade de atestar a vontade do morto, do autor da herança. O foco
principal da palestra foi o testamento público, sendo certo que os seus
requisitos essenciais estão descritos no art. 1.864 do vigente Código Civil, a
saber: a) ser escrito por Tabelião ou por seu substituto legal em seu
livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este
servir-se de minuta, notas ou apontamentos; b) ser lavrado o
instrumento, ser lido em voz alta pelo Tabelião ao testador e a duas
testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e
do oficial; e c) ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado
pelo testador, pelas testemunhas e pelo Tabelião. Pontue-se que esse
dispositivo equivale, com alterações, ao art. 1.632 do Código Civil de 1916,
tendo sido reduzido o número de testemunhas de cinco para duas, ou seja, a
própria lei já realizou a mitigação das formalidades.
No mesmo sentido de
relativização, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem, há tempos,
mitigando as formalidades testamentárias, diante do princípio da conservação do
negócio jurídico e da máxima favor testamenti, preservando-se ao
máximo a autonomia privada do autor do ato de última vontade.
Como primeira concreção
jurisprudencial, destaco acórdão publicado no Informativo n. 435 da Corte
Superior, que acabou por afastar a necessidade da presença de todas as
testemunhas antes exigidas, bem como a de que o ato fosse lavrado pelo próprio
titular do Cartório. Como ali se decidiu, "busca-se, no recurso, a
nulidade de testamento, aduzindo o ora recorrente que a escritura não foi
lavrada pelo oficial de cartório, mas por terceiro, bem como que as cinco
testemunhas não acompanharam integralmente o ato. O tribunal a quo afirmou
que não foi o tabelião que lavrou o testamento, mas isso foi feito sob sua
supervisão, pois ali se encontrava, tendo, inclusive, lido e subscrito o ato na
presença das cinco testemunhas. Ressaltou, ainda, que, diante da realidade dos
tabelionatos, não se pode exigir que o próprio titular, em todos os casos,
escreva, datilografe ou digite as palavras ditadas ou declaradas pelo testador.
Daí, não há que declarar nulo o testamento que não foi lavrado pelo titular da
serventia, mas possui os requisitos mínimos de segurança, de autenticidade e de
fidelidade. Quanto à questão de as cinco testemunhas não terem acompanhado
integralmente a lavratura de testamento, o TJ afirmou que quatro se faziam
presentes e cinco ouviram a leitura integral dos últimos desejos da testadora,
feita pelo titular da serventia. Assim, a Turma não conheceu do recurso por
entender que o vício formal somente invalidará o ato quando comprometer sua
essência, qual seja, a livre manifestação da vontade da testadora, sob pena de
prestigiar a literalidade em detrimento da outorga legal à disponibilização
patrimonial pelo seu titular. Não havendo fraude ou incoerência nas disposições
de última vontade e não evidenciada incapacidade mental da testadora, não há
falar em nulidade no caso. Precedente citado: REsp 302.767/PR, DJ 24.09.2001”
(STJ, REsp 600.746/PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 20.05.2010).
Concordo com o entendimento
específico constante do aresto, sendo certo que, como visto, o próprio
codificador de 2002 reduziu o número de testemunhas do testamento público, de
cinco para duas, por supostamente entender que havia um exagero na previsão
anterior. Essa mitigação de requisitos formais e solenes, fazendo prevalecer a
materialização do Direito Privado contemporâneo, foi confirmada em outro
acórdão do Tribunal da Cidadania mais recente, do ano de 2013. Conforme se
depreende de sua ementa, que colaciona outro precedente, “a Corte Local, ao
interpretar as disposições de última vontade, considerou não haver qualquer
dificuldade sobre o destino dos bens, pois o de cujus dispôs de todos
os seus bens. Igualmente, em relação à qualificação dos beneficiários pelo
testamento, o tribunal de origem assentou que estes se encontram
suficientemente identificados. Ademais, a instância ordinária considerou
inexistir qualquer mácula na entrega da minuta do testamento 2 (dois) dias
antes de sua leitura e assinatura, mormente porque a autora da herança, após a
sua leitura, ratificou o seu conteúdo na presença das 5 (cinco) testemunhas e
do tabelião, sendo alegada irregularidade insuscetível de viciar a vontade da
testadora. (...) A corte de origem asseverou que a vontade da testadora foi
externada de modo livre e consciente, sendo perfeitamente compreensível e
identificável as disposições testamentárias. Assim, ‘a análise da regularidade
da disposição de última vontade (testamento particular ou público) deve
considerar a máxima preservação do intuito do testador, sendo certo que a
constatação de vício formal, por si só, não deve ensejar a invalidação do ato,
máxime se demonstrada a capacidade mental do testador, por ocasião do ato, para
livremente dispor de seus bens’ (AgRg no REsp 1.073.860/PR, Rel. Min. Antonio
Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 21.03.2013, DJE 01.04.2013)” (STJ, Ag. Rg. no Ag.
Rg. no REsp 1.230.609/PR, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJE 02.10.2013, p.
458).
De data ainda mais próxima, do ano
de 2017, em caso envolvendo testamento público celebrado por deficiente visual
e citando a minha posição doutrinária, deduziu o mesmo Superior Tribunal de
Justiça que “atendidos os pressupostos básicos da sucessão testamentária – i)
capacidade do testador; ii) atendimento aos limites do que pode dispor e; iii)
lídima declaração de vontade – a ausência de umas das formalidades exigidas por
lei, pode e deve ser colmatada para a preservação da vontade do testador, pois
as regulações atinentes ao testamento têm por escopo único a preservação da
vontade do testador”. Sendo assim, “evidenciada, tanto a capacidade cognitiva
do testador quanto o fato de que testamento, lido pelo tabelião, correspondia,
exatamente à manifestação de vontade do de cujus, não cabe, então, reputar
como nulo o testamento, por ter sido preterida solenidades fixadas em lei,
porquanto o fim dessas – assegurar a higidez da manifestação do de cujus –, foi
completamente satisfeita com os procedimentos adotados” (STJ, REsp
1.677.931/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.08.2017, DJe
22.08.2017). Merece destaque o trecho que aponta a possibilidade de se
confirmar a vontade do testador quando faltar um ou outro requisito formal
previsto em lei, e não todos eles.
Como sustento em minhas obras,
todas essas decisões citadas são louváveis, contando com meu pleno apoio, pois
reafirme-se que a tendência contemporânea é que o material prevaleça sobre
o formal; que o concreto prepondere sobre as ficções jurídicas. Além da citada
conservação do negócio jurídico e a busca da preservação do testamento, tal
constatação tem relação direta com o princípio da operabilidade, adotado pela
codificação privada de 2002, que busca um Direito Privado real e efetivo, na
linha da concretude pregada por Miguel Reale.
De todo modo, como advertem
Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes,
"a preconizada atenuação do rigor formal do testamento deve ser aplicada
com cautela. Afirma-se que a forma dos atos negociais não pode ser um fim em si
mesma, arbitrária e caprichosa. Essa deve ser disposta não para uma função
qualquer, mas para uma função que seja constitucionalmente apreciável (Pietro
Perlingieri, Forma dei negozi, p. 61). Sem dúvida, a manifestação da última
vontade, através do testamento, constitui expressão da personalidade humana.
Por este motivo, em virtude dos efeitos causa mortis do ato, as
formalidades testamentárias atendem aos interesses superiores do ordenamento
jurídico, na medida em que garantem a espontaneidade da manifestação da última
vontade e a sua fiel execução quando da abertura da sucessão, em estreita
conexão com a tutela da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III)"
(TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin
de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de
Janeiro: Renovar, 2014. v. IV, p. 681).
De fato, afastar todas as
formalidades ou solenidades do ato testamentário significa negar a sua
estrutura e a sua função, o que não se pode admitir. A redução de burocracias -
tão defendida e difundida nos dias de hoje, inclusive por mim -, não pode
significar o sacrifício de categorias jurídicas há tempos consolidadas e
experimentadas, inclusive entre nós.
Como exemplo de incidência dessa
afirmação, recentemente tive um caso concreto em que o ato de última vontade
foi realizada com a nefasta prática das "testemunhas de viveiro", em
que elas já colocavam previamente as suas assinaturas em vários atos lavrados
perante o Tabelionato de Notas, em clara ilicitude civil nulificante, por
desrespeito a normas de ordem pública. Em casos como esse, em que não há o
atendimento a qualquer umas formalidades do testamento público, pois nenhuma
das testemunhas viu e esteve presente à lavratura do ato, não se pode admitir a
incidência da tese da mitigação das formalidades. O Direito não pode admitir
condutas costumeiras como essas, verdadeiro costume contra legem, que
coloca em descrédito o nobre instituto do testamento e também a atividade
notarial de nosso País, não podendo o Poder Judiciário dar chancela decisória a
tal prática, muito comum no passado, infelizmente.
Em suma, a mitigação das
formalidades do ato testamentário, apesar de saudável, louvável e desejável
juridicamente, não pode representar a ruptura absoluta do envoltório jurídico
construído para que se ateste a vontade do morto, sob pena de se sacrificar uma
categoria tão útil e tão efetiva para a concretização da autonomia privada.
[1] Coluna
do Migalhas de outubro de 2019.
[2] Pós-Doutorando
e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela
PUC-SP. Professor Titular permanente do programa de mestrado e doutorado da
FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da
EPD. Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente
do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Fonte: IBDFAM