Por Marco Antonio Greco Bortz, Oficial de Registro de Imóveis de Mirandópolis, SP.
Breve reflexão sobre o sofisma do alto custo cartorário – e o Governo que se põe a serrar o próprio galho em que está sentado.
Temos acompanhado com interesse os debates acerca dos custos notariais e registrários, e tem sido constante a afirmação de que a atividade extrajudicial é responsável por um elevado custo que afeta e impacta os interessados em formalizar juridicamente o direito à propriedade.De acordo com esse discurso os cartórios surgem como verdadeiros vilões, causadores, em virtude de seus elevados ganhos, de óbices consideráveis para o registro da propriedade privada.
Vamos demonstrar o sofisma que se encontra na base de tal afirmação e revelar que, na verdade, o real causador do custo principal da transmissão da propriedade imobiliária no País, é o próprio Estado. Vejamos:
Tomemos um imóvel no valor de R$100.000,00 sendo transmitido onerosamente (por compra e venda, por exemplo). No Estado de São Paulo gastar-se-á com custas cartorárias[1] o montante de R$2.516,99, e com o imposto de transmissão (ITBI) de R$2.000,00 a R$3.000,00, conforme o município (a alíquota varia de 2 a 3% sobre o valor do imóvel).
Assim, aparentemente, temos a seguinte configuração de uma transmissão imobiliária a título oneroso:
A) Escritura – 1.508,91 – 33,4%
B) Registro – 1.008,08 – 22,3%
C) Soma (A + B) – 2.516,99 – 55,7%
D) ITBI – 2.000,00 – 44,3%
E) Total – 4.516,99 – 100,0%
O gráfico acima revela, repita-se, na aparência, que os valores conduzidos aos cartórios são superiores aos valores arrecadados pelos tributos que incidem na operação imobiliária. Para chegarmos à realidade da distribuição dos recursos arrecadados é preciso observar a composição dos emolumentos cartorários. A escritura pública mencionada no quadro acima em “A” é composta da seguinte forma:
A) Ao tabelião – 937,20
B) Ao Estado – 266,37
C) Ao IPESP – 197,31
D) Ao TJSP – 49,33
F) Ao fundo do RCPN – 49,33
G) À Santa Casa de Misericórdia – 9,37
H) Tributos (B + C + D + F + G) – 571,71
I) TOTAL GERAL – 1.508,91
Veja-se que, ao contrário do que aparenta a princípio, o tabelião não recebe integralmente o valor de R$1.508,91 que cobra pela escritura, em virtude dos repasses contidos nas letras B à G do quadro imediatamente acima. Tratam-se de contribuições e taxas, tributos portanto, devidos ao Estado, ou à pessoa a quem o ente estatal devia diretamente remunerar, como no caso das contribuições à Santa Casa de Misericórdia ou ao fundo do Registro Civil das Pessoas Naturais (cobertura dos atos gratuitos de nascimento e óbito instituídos em lei).
O mesmo vale para o registro, vide a tabela:
A) Ao oficial – 630,05
B) Ao Estado – 179,07
C) Ao IPESP – 132,64
D) Ao TJSP – 33,16
F) Ao fundo do RCPN – 33,16
G) À Santa Casa de Misericórdia – 0,00
H) Tributos (B + C + D + F + G) – 378,03
I) TOTAL GERAL – 1.008,08
Considerando, pois, a decomposição da formação dos emolumentos notariais e registrários, temos agora, o quadro real que revela quem realmente pesa no valor total da operação:
Notas – Registro – Soma
A) Ao tabelião/oficial – 937,20 – 630,05 – 1.567,25 – 34,7%
B) Ao Estado – 266,37 – 179,07 – 445,44 – 9,9%
C) Ao IPESP – 197,31 – 132,64 – 329,95 – 7,3%
D) Ao TJSP – 49,33 – 33,16 – 82,49 – 1,8%
F) Ao fundo do RCPN – 49,33 – 33,16 – 82,49 – 1,8%
G) À Santa Casa de Misericórdia – 9,37 – Nulo – 9,37 – 0,2%
H) Tributos (B + C + D + F + G) – 571,71 – 378,03 – 949,74 – 21,0%
I) Imposto inter vivos (ITBI) – 2.000,00 – 44,3%
J) Total Tributos – 2.949,74 – 65,3%
K) Soma total – 1.508,91 – 1.008,08 – 4.516,99 – 100,0%
O presente quadro é revelador da situação real, e demonstra a tese manejada no início deste trabalho. Considerando os municípios que aplicam a menor alíquota para o imposto de transmissão (ITBI), ou seja, de 2%, os cartórios, somados, notas e registro, percebem 34,7% de todo o valor arrecadado na transmissão imobiliária, enquanto que ao Estado são conduzidos 65,3% do total, numa operação onerosa (compra e venda).
Mas, na verdade, esse quadro não esgota, ainda, a participação do Estado sobre os custos totais. É que, sobre os valores atribuídos aos cartórios, 34,7% do total, ainda incidirão outros tributos, como o imposto de renda, as contribuições sociais decorrentes da contratação de empregados e o ISS-QN. Da parte do alienante poderá, ainda, haver o imposto sobre o lucro de ganho de capital. Como toda essa tributação é variável, pois depende da quantidade de empregados e das despesas operacionais, da parte dos cartórios, e da variação do valor do imóvel no caso do alienante, ficamos impedidos de dar o número final real. Mas, por certo, será bem superior aos 65,3% assinalados no quadro acima.
Façamos o mesmo comparativo a partir de um negócio jurídico a título gratuito.
Notas – Registro
A) Ao tabelião/oficial – 937,20 – 630,05 – 1.567,25 – 24,0%
B) Ao Estado – 266,37 – 179,07 – 445,44 – 6,8%
C) Ao IPESP – 197,31 – 132,64 – 329,95 – 5,1%
D) Ao TJSP – 49,33 – 33,16 – 82,49 – 1,3%
F) Ao fundo do RCPN – 49,33 – 33,16 – 82,49 – 1,3%
G) À Santa Casa de Misericórdia – 9,37 – – 9,37 – 0,1%
H) Tributos (B + C + D + F + G) – 571,71 – 378,03 – 949,74 – 14,6%
I) Imposto doação (ITCMD) – 4.000,00 – 61,4%
J) Total Tributos – 4.949,74 – 76,0%
K) 1.508,91 – 1.008,08 – 6.516,99 – 100,0%
Observe-se que, em se tratando de ato jurídico não oneroso, como numa doação, verbi gratia, o Estado recolhe 76,0% do total dos valores pagos pelos usuários do sistema. Vale aqui, a mesma observação feita acima, quanto aos outros tributos decorrentes de toda essa operação e que são variáveis, assim, de fato, o Estado fica com mais de 76,0% da totalidade dos recursos empregados numa doação, podendo chegar à marca de 80,0 ou 85,0% com facilidade.
Por amor à brevidade, pois esta reflexão não tem o condão de ir mais fundo no tema[2], cumpre observar que o corte sistemático nos valores dos emolumentos notariais e registrários não modifica a situação final do usuário, pois é o próprio Estado, por meio da tributação, que impacta de forma contundente o custo global da aquisição imobiliária.
Mas, os órgãos destinatários das contribuições e taxas incluídas na composição dos emolumentos cartoriais serão sensivelmente prejudicados. A rubrica “Ao Estado” da tabela de emolumentos, em São Paulo, atende simplesmente a toda a assistência judiciária prestada junto aos tribunais (ressalte-se que só na Justiça Criminal, mais de 90% das ações são cobertas pela assistência judiciária). Nem se fale do fundo que sustenta as gratuidades do Registro Civil, a carteira previdenciária do IPESP, da Santa Casa de Misericórdia e do próprio Poder Judiciário.
Há que se acrescentar, ainda, que mesmo considerando a hipótese de o Estado vir a reduzir também os valores tributários devidos pela operação de transmissão imobiliária, estará a prejudicar a arrecadação dos próprios entes federativos. Haverá sensível prejuízo para as prefeituras, destinatárias do imposto de transmissão inter vivos (ITBI), dos estados, a quem se atribui o imposto de doação (ITCMD) e da União, a quem cabe o imposto de ganho de capital.
É bom gizar que não se advoga nesta seara o não atendimento ao hipossuficiente, muito ao contrário, o Estado deve envidar todos os esforços para que os pobres tenham acesso à tábua predial, e os registradores são parceiros nessa empreitada.
Apenas à guisa de esclarecimento é bom frisar que o obstáculo real para que o pobre aceda ao registro não é o sistema registral/notarial. Aliás, diga-se en passant, que a maioria dos cartórios brasileiros aufere renda inferior a R$5.000,00 reais por mês, e não são poucos os que se encontram na faixa de três salários e que serão, por certo, beneficiários dos próprios programas de acesso à moradia.
O importante é visualizar o problema real e não o aparente, como o médico que combate a infecção ministrando apenas aspirina e que, obviamente atinge apenas superficialmente o problema concreto e se não mudar de rumo no tratamento pode levar o paciente a óbito.
O açodamento da redução dos emolumentos, no nosso caso, afetará sobremaneira o próprio mutuário da casa própria, pois a desestruturação do sistema registral e de todos os consectários que gravitam em torno da operação cartorária vão respingar de volta nos beneficiários do programa. O hipossuficiente ficará sem advogado gratuito, o utente da Santa Casa deixará de ser atendido, ficando sem misericórdia, o usuário do Poder Judiciário enfrentará uma fila maior ainda para ver sua causa julgada, pois em boa parte da modernização da Justiça, no estado de São Paulo, faz-se com recursos da taxa judiciária constante dos emolumentos extrajudiciais. E, em última análise, se o registrador não tiver recursos para assegurar a propriedade formalizada (lembrando que o oficial e o tabelião são responsáveis civilmente pelos prejuízos que causarem), o mutuário não terá, sequer, o reconhecimento legal de sua propriedade garantida. Lembrando que a Lei 11.977/09 impõe ao registrador que digitalize todo o acervo tabular desde a vigência da Lei 6.015/73, e que isto importa em investimentos materiais e humanos cujo custo alguém terá que assumir.
Como se pode ver, com mais clareza a partir dos dados acima agitados, trata-se de equação por demais complexa e que não pode ser avaliada superficialmente, sob pena de causar verdadeira desordem social. Daí que ao ouvirmos um agente do governo acusar os cartórios de serem os responsáveis pelo custo do registro perguntamos: será que ele sabe com profundidade o que está falando? Ou estará serrando o próprio galho em que está sentado?
Notas
[1] – Todos os valores dos emolumentos mencionados neste trabalho podem ser conferidos no sítio: http://www.anoregsp.org.br/tabelas/indice2009.asp
[2] – Aliás, para quem quiser uma análise profunda da questão dos emolumentos cartorários, vale a pena consultar Arruñada, Benito (1995), Análisis económico del notariado, CGN, Madrid, em http://www.arrunada.org/PublicationsExpBusc.aspx?Id=87.
Foto da manchete: Shellys [http://www.flickr.com/people/shellysblogger/].
Publicado por: Sérgio Jacomino
Categoria: Artigos, Portal de Notícias, Notícias do Meio
Tags: Emolumentos, PMCMV
Fonte: http://registradores.org.br
Nota de responsabilidade
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