Segundo matéria veiculada em
importante folha nacional, “a União estima arrecadar pelo menos R$20 bilhões em
multas nos primeiros 12 meses de vigência da Lei Geral de Proteção de Dados
(LGPD)". A estimativa oficial, se verídica, é de total descabimento e
prematuridade. Isso porque a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD),
ainda embrionária, terá, em seus primeiros passos, uma função eminentemente
pedagógica – e não, sancionatória –, competindo-lhe impor ampla e prévia ação
governamental para o exato esclarecimento coletivo quanto às novas
determinações legais.
Ilustrativamente, a LGPD
determinou ao poder público a tarefa de “promover na população o conhecimento
das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais e das
medidas de segurança” (artigo 55-J, VI). No mesmo passo, foi determinado ao
Conselho Nacional de Proteção de Dados o dever de “disseminar o conhecimento
sobre a proteção de dados pessoais e da privacidade à população” (artigo 58-B,
V). Ou seja, resta claro que a ANPD, antes de querer valer seus ímpetos
punitivos, deverá estabelecer um efetivo programa administrativo sobre os
limites, possibilidades, deveres e obrigações previstas na lei.
Embora a LGPD só adquira vigência
integral a partir de agosto de 2020, o fato é que tal prazo é absolutamente
exíguo ao pleno entendimento, interpretação e adequação de condutas. A lei,
frisa-se, é excessivamente complexa. Isso não significa que a vacatio
legis deve ser estendida, mas que a autoridade pública deverá iniciar
imediatamente seus esforços no campo pedagógico. E um detalhe: os regulamentos
e normas editados pela ANPD devem ser precedidos de consulta e audiência
públicas, bem como de análises de impacto regulatório.
Ora, é sabido e ressabido que a
justa eficácia da legalidade pressupõe um necessário período de maturação
sistêmica. Até mesmo porque uma coisa é colocar a lei no papel; outra,
completamente diferente, é adequá-la à realidade da vida. No caso, a LGPD é uma
norma que veio para ficar, tendo como norte final a transformação digital dos
negócios, mediante a tutela otimizada dos atributos e dados relativos à
dignidade pessoal.
Sim, os avanços da tecnologia, em
especial dos instrumentos de inteligência artificial, tornam corrente o bordão
"data is the new money". Por assim ser, à luz da garantia
constitucional da intimidade e privacidade, especialmente os dados de caráter
sensível devem ser objeto de firme, segura e efetiva proteção jurídica. Para
tanto, a LGPD impõe verticais deveres de reestruturação empresarial, bem como
às pessoas jurídicas de direito público. Indubitavelmente, em sua curva
evolutiva, a lei promoverá inúmeros avanços institucionais nas organizações,
aperfeiçoando os fluxos informacionais da vida em sociedade.
Todavia, é absolutamente
impossível uma conformação instantânea aos numerosos ditames legais, impondo-se
um acompanhamento fiscalizatório consciente e gradual, respeitada a capacidade
econômica das empresas privadas. Sobre o ponto, há ordem expressa para a ANPD
“editar normas, orientações e procedimentos simplificados e diferenciados,
inclusive quanto aos prazos, para que microempresas e empresas de pequeno
porte, bem como iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo
que se autodeclarem startups ou empresas de inovação, possam
adequar-se a esta Lei” (artigo 55-J, XVIII).
Resta claro, portanto, que
somente poder-se-á pensar em sanções, quando todas as diretrizes pedagógicas da
lei forem alvo de cabal cumprimento estatal. Do contrário, todo e qualquer
sancionamento prematuro poderá ser alvo de impugnação eficaz na via judicial
competente.
Em tempo, a LGPD não utilizou
meias palavras para dizer que “as sanções serão aplicadas após procedimento
administrativo que possibilite a oportunidade da ampla defesa, de forma
gradativa, isolada ou cumulativa, de acordo com as peculiaridades do caso
concreto” (artigo 52, parágrafo 1°). Ou seja, a pretensão punitiva estatal
deverá ser precedida de devido processo legal, dialético e defensivamente
contraditório, sendo cogente à autoridade pública considerar se o suposto
infrator adotou ou não política de boas práticas e governança, se houve pronta
efetivação de medidas corretivas, bem como ponderar a proporcionalidade entre a
gravidade da falta e a intensidade da sanção, entre outros critérios legalmente
determinados.
Adicionalmente, não haverá
processos sumários nem decisões de única instância, tendo a lei estabelecido
que é dever da ANPD “fiscalizar e aplicar sanções em caso de tratamento de
dados realizado em descumprimento à legislação, mediante processo
administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de
recurso” (artigo 55-J, IV). Portanto, antes de querer faturar receitas
bilionárias, é função primordial do governo bem institucionalizar a autoridade
pública, garantindo a aplicação equilibrada da LGPD.
Os desafios do futuro são
imensos, exigindo criatividade intelectual, multidisciplinaridade de
conhecimentos e flexível adaptabilidade de condutas. Se aplicarmos a LGPD com a
antiga rigidez do passado, será o desenvolvimento nacional o maior prejudicado.
Por tudo, a lei só é boa quando bem aplicada. Aliás, em um Estado de Direito, a
forma de aplicação da lei determina o progresso ou a pobreza das nações. Será,
então, a tecnologia nossa oportunidade histórica ou apenas mais um paliativo
para as tradicionais forças do atraso? Eis o dilema que governará a LGPD.
*Sebastião Ventura Pereira da
Paixão Jr. é advogado e cofundador do Instituto Dynamic Mindset
Fonte: ConJur