O Direito atribui ao instituto do
testamento um caráter nitidamente patrimonial. O art. 1.788 do Código Civil afirma
que “Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros
legítimos...”. O Direito das Sucessões é estruturado com base no princípio da
“saisine”, de acordo com o qual os herdeiros substituem o “de cujus” no acervo
de bens e obrigações. Nesse sentido, o testamento funciona como instrumento de
transmissão do acervo patrimonial do “de cujus”, configurando exercício de seu
direito de disponibilidade patrimonial, dentro dos limites traçados pela
legislação civil.
A figura do testamento vital
rompe com a tradição patrimonialista do instituto do direito sucessório,
passando-se a entender que o testamento pode dispor não apenas a respeito da
destinação dos bens do “de cujus”, mas também a respeito de aspectos que
concernem à sua própria vida.
Hodiernamente, o principal marco
normativo do qual se pode extrair a fundamentação do testamento vital é o art.
15 do Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de
vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Como se vê, o marco
normativo não é expresso com relação ao testamento vital ou a documento que
indique de antemão a quais tratamentos a pessoa aceita se submeter.
Assim, o testamento vital, apesar
do nome, não guarda estreita relação com o Direito das Sucessões. Consoante
manifestado alhures, o direito sucessório tem cunho patrimonial, não se
relacionando, de maneira direta, aos direitos da personalidade em sentido
estrito. O nome “testamento”, contudo, é consagrado na literatura especializada
acerca do tema e tem sentido se enfocado sob o aspecto de que o testamento se
volta a garantir a disposição da vontade para um momento em que a pessoa não
possa mais expressá-la, em virtude do falecimento. No caso do testamento vital,
essa impossibilidade pode decorrer de causas biomédicas que tornem impossível a
manifestação inequívoca da vontade.
A possibilidade jurídica do
testamento vital tem sido reconhecida por atos desprovidos de cunho
normativo-jurídico expresso. Assim, por exemplo, o Conselho da Justiça Federal
aprovou o Enunciado nº 528 da V Jornada de Direito Civil, com a seguinte
redação: “É válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico,
também chamado ‘testamento vital’ em que a pessoa estabelece disposições sobre
o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se
encontrar sem condições de expressar sua vontade”. Na justificativa apresentada
para aprovação do Enunciado, explica-se que a disposição da vontade de ser
formalizada por testamento ou qualquer outro documento autêntico.
A Resolução nº 2.217/2018 do
Conselho Federal de Medicina (Código de Ética Médica) afirma expressamente, em
seu art. 41, que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a
pedido deste ou de seu representante legal. Porém, o parágrafo único do mesmo
dispositivo estabelece regra de exceção, nos seguintes termos:
Parágrafo único. Nos casos de
doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados
paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas
inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do
paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.
O texto não menciona o testamento
vital. Porém, a redação parece clara no sentido de apontar que a vontade do
paciente, no exercício da sua autodeterminação, deve ser levada em conta nas
hipóteses de doença incurável e terminal. Ademais, cabe destacar que o
dispositivo está inserido no texto sob a forma de parágrafo único, de modo que
possui correlação com o “caput” do art. 41. Ora, o “caput” do art. 41 da
Resolução CFM nº 2.217/2018 trata da abreviação da vida paciente, ainda que a
pedido. Interpretando-se sistematicamente o art. 41 do Código de Ética Médica,
pode-se concluir que a abreviação da vida do paciente, apesar de vedada, é
possível em casos de doença incurável ou terminal, sempre considerando a
vontade expressa do paciente.
Em 2012, o Conselho Federal de
Medicina editou a Resolução nº 1.995, que trata mais expressamente das
diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Para a Resolução, as diretivas
constituem o “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo
paciente, sobre cuidados e tratamento que quer, ou não receber no momento em
que estiver incapacitado de expressar livre e com autonomia, sua vontade”. O
texto dispõe como regra o dever do médico de respeitar as diretivas de vontade
que o paciente houver indicado, afirmando, inclusive, que essas diretivas se
sobrepõem até mesmo ao desejo dos familiares. A Resolução excepciona diretivas
que estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética
Médica.
Alguns Tribunais têm reconhecido
o direito de autodeterminação em relação à própria vida, por meio do testamento
vital, mencionando a expressamente a Resolução CFM nº 1.995/2012. O Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo:
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. DIRETIVAS
ANTECIPADAS DE VONTADE. ORTOTANÁSIA. Pretensão de estabelecer limites à atuação
médica no caso de situação futura de grave e irreversível enfermidade, visando
o emprego de mecanismos artificiais que prologuem o sofrimento da paciente.
Sentença de extinção do processo por falta de interesse de agir. Manifestação
de vontade na elaboração de testamento vital gera efeitos independentemente da
chancela judicial. Jurisdição voluntária com função integrativa da vontade do
interessado cabível apenas aos casos previstos em Lei. Manifestação que pode
ser feita por meio de cartório extrajudicial. Desnecessidade de movimentar o
Judiciário apenas para atestar sua sanidade no momento da declaração de vontade.
Cartório Extrajudicial pode atestar a livre e consciente manifestação de
vontade e, caso queira cautela adicional, a autora poderá se valer de
testemunhas e atestados médicos. Declaração do direito à ortotanásia. Autora
que não sofre de qualquer doença. Pleito declaratório não pode ser utilizado em
caráter genérico e abstrato. Falta de interesse de agir verificada.
Precedentes. Sentença de extinção mantida. Recurso não provido. (TJSP - AC: 10009381320168260100, Relator:
MARY GRÜN, SÉTIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, Data de Publicação: 24/04/2019)
Observa-se, portanto, que a
figura do testamento vital não tem sido introduzida no direito brasileiro pelas
vias legislativas tradicionais, mas por mecanismos de atuação normativa mais
periférica (soft law), os quais, a rigor, não são dotados da coercitividade que
se espera dos textos normativos em geral. Até o presente momento, o testamento
vital tem sido aceito por jurisprudências esparsas, com base em normativos que
não são dotados de ampla generalidade (como é o caso das resoluções do Conselho
Federal de Medicina, que criam regras direcionadas mais precisamente aos
médicos) ou, ainda, decorrem de interpretações do Código Civil e da teoria dos
direitos da personalidade, porém sem marco normativo expresso.
É preciso reconhecer, porém, que,
mesmo não sendo as Resoluções do Conselho Federal de Medicina normas jurídicas
com força de lei, esses atos normativos têm contribuído muito para a introdução
do instituto do testamento vital no direito brasileiro. Basta verificar que
muitos julgados, a exemplo do supratranscrito, utilizam a Resolução nº
1.995/2012 como fundamento de decisão.
Essa circunstância decorre, em
boa parte, do caráter interdisciplinar do instituto do testamento vital.
Significa dizer que não basta olhá-lo apenas sob o viés jurídico, pretendendo
estabelecer apenas relações com as figuras tradicionais do Direito Civil, as
quais sequer foram pensadas para abarcar os propósitos do testamento vital.
As diretivas de vontade se
relacionam diretamente à atividade e ao saber médicos e ao novel ramo do
direito médico e da saúde.
Fonte: R10