Imagine editar regulamentos para
todos os segmentos que tratam dados pessoais. Imagine todas as formas de
tratamento de dados possíveis em áreas tão distintas: de condomínios a
indústria, passando por telecomunicações, planos de saúde, hospitais… Essa é
uma das missões da Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, criada
pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), cuja vigência
plena passa a ocorrer a partir de agosto de 2020.
Mas o legislador caminhou bem ao
oportunizar o compartilhamento dessa missão. A lei permite que os próprios
controladores ou operadores de dados pessoais elaborem, individualmente ou por
meio de associações, regras de boas práticas e de governança sobre os dados
pessoais, que podem ser reconhecidas pela ANPD. Trata-se da chamada
corregulação ou autorregulação regulada. Especificamente quanto a esse ponto,
foi apresentado pelo Senador Antonio Anastasia o Projeto de Lei n. 6212/2019
que altera a LGPD para aperfeiçoar os mecanismos de corregulação.
Mecanismos de autorregulação têm
se tornado cada vez mais comuns e relevantes, uma vez que, ao mesmo tempo que
faz uso da expertise do setor regulado para criar regras mais efetivas, impõe
responsabilidade social e jurídica aos agentes que o integram e são por eles
regulados. Dadas as limitações a que está sujeito o Estado regulador, é certo
que mecanismos como esse têm enorme poder de tornar mais racional e efetiva a
regulação. Contudo, é necessário garantir que instrumentos dessa natureza
atendam a requisitos que regem o Estado de Direito e a Administração, como a
busca pela publicidade e a maximização da participação daqueles que serão
afetados pelas novas regras.
Por meio dos procedimentos
sugeridos pela proposta do Senador Anastasia, uma norma de autorregulação deve
ser submetida à homologação da ANPD para que: a) passe a ter efeito vinculante
para quem a produziu ou, no caso de associação, para todos os associados; e b)
exclua a possibilidade de aplicação de sanções administrativas aos
controladores ou operadores que demonstrem ter seguido as regras e
procedimentos homologados pela Autoridade.
Essas regras, se aprovadas, irão
fortalecer a ANPD, que será responsável tanto pelo controle de legalidade, ao avaliar
se a norma produzida pelos autoreguladores é compatível com a LGPD, quanto pelo
controle de conveniência, decidindo acerca da adequação da norma a sua
estratégia regulatória. Nesse sentido, poderá a Autoridade aprovar o
regramento, rejeitá-lo ou exigir modificações. Nos casos em que não haja
aprovação, exigir-se-á, de forma fundamentada, que ela justifique as razões que
levaram à rejeição ou ao pedido de adequação. Tal aspecto é fundamental para
garantir legitimidade às decisões que a ANPD vier a tomar.
Ademais, o procedimento previsto
pelo Projeto prevê exigências que almejam garantir que as decisões das
autoridades de proteção de dados pessoais sejam legítimas, isto é, produzidas
efetivamente pelos potenciais afetados e com densidade técnica. Dentre elas
estão: a) a existência de avaliação de impacto regulatório, a fim de que sejam
previstos custos, benefícios e efetividade do regramento; b) a participação
efetiva do setor e dos potenciais atingidos pelo regramento, inclusive por meio
de audiências e consultas públicas cujos argumentos sejam efetivamente levados
em conta na formulação do ato; c) a análise cuidadosa da proposta, a ser feita
por meio de um parecer; d) a legitimidade da proposta, que precisa ser aprovada
pelo setor competente da empresa (no caso de ato individual) ou pelos
representantes do setor, na forma estatutária.
Tendo em vista que as regras se
tornam mais legítimas na medida em que aumenta a participação dos afetados por
ela em sua formulação, especialmente através das audiências e consultas
públicas no caso da Proposta de Lei, busca-se assegurar que elas sejam fruto de
uma deliberação bottom-to-up, isto é, de baixo (do setor regulado) para
cima (ANPD).
É fato que, à medida que a
economia digital e da informação se fortaleceu, roubou espaço da privacidade. A
LGPD surge com o propósito de equilibrar essa disputa, estabelecendo, em
parceria com os setores afetados, novos padrões regulatórios, capazes de
atender ao interesse público e individual através da autorregulação regulada.
Enquanto exige-se do Estado verdadeira transformação de suas políticas públicas
e regulação, requer-se que os agentes privados adaptem suas políticas de
governança e compliance, a fim de que se adequem ao novo quadro
normativo.
A nova Lei, que deverá entrar em pleno
vigor em agosto de 2020, iniciará a fiscalização e a consequente aplicação de
sanções e imposição do ressarcimento de danos, ao mesmo tempo que, desde já,
possibilita que controladores e associações sejam protagonistas do desafio de
conformidade com a LGPD por meio da elaboração de seus próprios regulamentos os
quais poderão ser validados pela ANPD, conferindo segurança jurídica para
todos. Mãos à obra.
*Flávio Henrique Unes Pereira,
presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados da OAB Federal. Doutor e
mestre em Direito Administrativo. Advogado
*Renan Cruvinel, mestrando em
Direito Comercial – USP. Advogado
Fonte: Estadão