A introdução da Lei 13.964/2019 no ordenamento jurídico trouxe
substantivos avanços no processo penal brasileiro. Algumas alterações, no
entanto, representam grande retrocesso. A série de artigos que está sendo agora
inaugurada colocará em voga alguns desses problemáticos institutos, os quais
certamente serão profundamente debatidos pelo Poder Judiciário.
Para além das recentes discussões a propósito do juiz das
garantias — as quais serão objeto de artigo próprio —, forçoso a análise cautelosa
do “perdimento alargado”, inserido no artigo 91-A do Código Penal[1] pela Lei
13.964/2019.
Antes desse diploma legal, o perdimento de bens em matéria penal
estava regido, basicamente, no artigo 91 do Código Penal, inserido no bojo da
reforma legislativa promovida em 1984[2]. Sob a ótica do artigo 91 do Código
Penal, a partir do momento em que resta indene de dúvida que a causa do
enriquecimento de um cidadão está lastreada em um ilícito penal, deve ocorrer o
perdimento do produto do crime pelo qual ele foi condenado, bem como a
reparação dos danos eventualmente causados pelo delito.
No perdimento alargado, o raciocínio é alterado. De acordo com o
novo artigo 91-A do Código Penal, com o advento de sentença condenatória
relativa a um delito cuja sanção máxima seja superior a seis anos de reclusão,
o magistrado poderá decretar o perdimento não apenas dos bens correlatos ao
objeto da sentença, como também de todo aquele patrimônio do acusado que exceda
aos bens compatíveis com seus rendimentos lícitos.
Antes de adentrar ao cerne da inconstitucionalidade do
perdimento alargado, é forçoso reconhecer que a má qualidade da redação do
artigo 91-A, reverberando defeito da redação do artigo 91 do Código Penal. Ao
manter as expressões “produto do crime” ou “proveito do crime”, a Lei
13.964/2019 perdeu a oportunidade de esclarecer se o intérprete deve deter uma
concepção do “produto do crime” ampla — como produto bruto — ou restrita — como
produto líquido”[3]. Independentemente da introdução desse novo instituto no artigo
91-A do Código Penal, essa importante modificação legislativa poderia aprimorar
a redação de dispositivos de nosso antigo Código Penal.
De toda forma, embora a inserção deste dispositivo no Código
Penal derive do projeto de lei "anticrime", apresentado ao Congresso
Nacional no início de 2019, o perdimento alargado encontra-se no ideário
jurídico brasileiro há mais tempo. No ano de 2016, o Ministério Público Federal
publicizou proposta legislativa com intuito de reduzir a prática dos delitos de
corrupção, denominada de “10 medidas contra a corrupção”. Entre as medidas
propostas pelo MPF, constava o perdimento alargado.
A redação desse instituto nesta proposta, no entanto, é
substancialmente diferente da redação conferida pela Lei 13.964/2019. Em vez de
o parâmetro para aplicação do instituto ser condenação pela prática de delito
cuja reprimenda máxima é superior a seis anos — como previsto no atual artigo
91-A do Código Penal —, na proposta do MPF estipulou-se rol taxativo de delitos
com relações aos quais seria possível operar o perdimento alargado quando
proferida sentença condenatória[4].
Fato é que, após tramitar no Congresso Nacional, essa medida
acabou por ser rejeitada na Câmara dos Deputados, tendo sido excluída do PL
4.850/2016.
Naquele momento, o MPF justificava a necessidade de introdução
do “perdimento alargado” no ordenamento primordialmente sob o argumento de que
“há situações em que não é possível identificar ou comprovar, nos termos
exigidos para uma condenação criminal, a prática de crimes graves que geram
benefícios econômicos, embora as circunstâncias demonstrem a origem ilícita do
patrimônio controlado por determinadas pessoas”. Sob esse prisma, o perdimento
previsto no artigo 91 do Código Penal não teria o condão de afetar o patrimônio
do condenado como a sua modalidade alargada.
Antevendo arguições de violação ao direito fundamental à
presunção de inocência, o MPF apontou que o perdimento de bens não seria uma
sanção penal relativa aos fatos que teriam gerado o patrimônio ilegítimo do cidadão,
ressaltando que, “como se trata de medida que atinge apenas o patrimônio de
origem injustificada, sem imputar ao afetado nenhum dos efeitos inerentes a uma
condenação criminal pelos fatos que ensejaram a posse desses bens, o confisco
alargado se harmoniza com o princípio da presunção de inocência”.
De forma similar, a Nota Técnica PGR-2 CCR 007/2019, elaborada
pela 2° Câmara de Coordenação e Revisão do MPF a propósito do “perdimento
alargado” previsto no projeto de lei "anticrime", consigna que o perdimento
alargado “não se trata de nova condenação ou de imposição de nova pena”. Sem
embargo, ao defender a constitucionalidade formal do projeto de lei
"anticrime", a própria nota técnica reconhece que o perdimento de
bens é uma das espécies de pena do processo brasileiro, tal como previsto no
artigo 5°, LXVI, da Constituição Federal, tornando a argumentação
contraditória. Se o perdimento dos bens de um delito é considerado uma das
penas deste, a aplicação do perdimento antes do julgamento do cidadão pelo
cometimento desse delito acaba por violar o direito fundamental à presunção de
inocência.
Bem verdade que a nota técnica lança um outro argumento para
fixar a constitucionalidade do perdimento alargado, notadamente o de que a
aplicação desse instituto é permitida apenas após a prolação de uma sentença
condenatória criminal, quando, então, restaria afastada a presunção de
inocência do cidadão.
No ponto, a concepção de presunção de inocência defendida pela
nota técnica parece ter sido deduzida com base no Direito Penal do autor, e não
do Direito Penal do fato. O enfoque utilizado pela nota técnica é que o cidadão
deixa de ser presumido inocente de toda e qualquer imputação a partir do
momento em que ele é condenado criminalmente. Na realidade, o parâmetro de
aplicação do direito fundamental à presunção de inocência no âmbito criminal
concerne às imputações de um fato tipificado como delito. É dizer: presume-se
que o cidadão é inocente com relação quaisquer imputações, ainda que tenha sido
preteritamente condenado em função de uma outra imputação. Essa presunção em
favor do cidadão não se perde ainda que com o advento de uma condenação
criminal.
A ausência de correlação entre o objeto da condenação criminal e
o objeto do perdimento alargado malfere não apenas a presunção de inocência do
cidadão, o qual, segunda a lógica do novo artigo 91-A do Código Penal, terá a
obrigação de demonstrar a origem lícita da integralidade de seu patrimônio — ao
invés de a acusação ter de demonstrar a ilicitude dele, em clara inversão
indevida do ônus da prova. Esse dispositivo também viola o princípio da
individualização da pena, na medida em que permite que a reprimenda extrapola o
objeto dos fatos que foram praticados pelo cidadão.
Com efeito, da forma como estruturado o perdimento alargado no
artigo 91-A do Código Penal, é possível que contradições sistêmicas sejam
geradas em casos concretos, na medida em que delitos que não produzem
diretamente efeitos patrimoniais, como o de incêndio, ensejem o perdimento
alargado de bens de um cidadão.
Sob diversos ângulos, portanto, o perdimento alargado, tal como
redigido no artigo 91-A do Código Penal, também viola o direito fundamental à
propriedade.
Considerando todas essas questões, a constitucionalidade do
artigo 91-A do Código Penal deve acabar sendo questionada perante o Supremo
Tribunal Federal, o qual certamente considerará os parâmetros acima expostos na
tomada de sua decisão.
[1] "Art. 91-A. Na hipótese de condenação por infrações às
quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser
decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes
à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja
compatível com o seu rendimento lícito.
§ 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo,
entende-se por patrimônio do condenado todos os bens:
I - de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o
domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou
recebidos posteriormente; e
II - transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante
contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal.
§ 2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da
incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio.
§ 3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida
expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia,
com indicação da diferença apurada.
§ 4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor da
diferença apurada e especificar os bens cuja perda for decretada.
§ 5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por
organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da
União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que
não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem
ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos
crimes".
[2] Tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário
declinam a necessidade de implementação de medidas para viabilizar o confisco
de bens que são produtos de crimes, embora não abordem expressamente o
instituto do “perdimento alargado”.
[3] Consoante essa
concepção, são passíveis de confisco todos os bens obtidos a partir do delito,
sem que haja qualquer tipo de desconto dos valores investidos em sua execução.
Por sua vez, sob a lógica do produto delitivo como benefício líquido do crime,
abate-se do benefício bruto do delito o valor investido para a sua comissão
(BLANCO CORDERO, Isidoro. El comiso de ganancias: ¿brutas o netas? — La Ley, no. 7569,
2011, p. 3).
[4] Os delitos elencados são: tráfico de drogas, comércio ilegal
de arma de fogo, tráfico internacional de arma de fogo, tráfico de influência,
corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, concussão, enriquecimento ilícito,
lavagem de dinheiro, organização criminosa, estelionato em prejuízo do erário
dentre outros.