A proteção de dados pessoais no Brasil tornou-se um dos
assuntos que mais têm despertado interesse da comunidade jurídica, e, quiçá, da
sociedade em geral. A intensificação do uso da Internet possibilitou a coleta
de dados com muita facilidade e essas informações se tornam bens imateriais de
grande valor e de importância estratégica para as empresas. Por outro lado,
esse maior conhecimento sobre o comportamento das pessoas, parcialmente obtido
de forma espontânea por meio de imagens, comentários e indicações de
localidade, deixa-as vulneráveis e expostas a riscos.
O ano de 2018 foi aquele em que houve condições favoráveis a
uma regulação mais intensa da atividade de tratamento de dados pessoais. Entrou
em vigor na Europa a General Data Protection Regulation - GPDR, exigindo-se dos
estados-membros a edição de novas leis sobre proteção de dados ou a alteração
daquelas já existentes. Nesse mesmo ano de 2018, promulgou-se entre nós a Lei
n. 13.709, a qual foi renomeada em 2019 para “Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)”,
e que entrará em vigor em agosto de 2020, após ter sua “vacatio
legis” prorrogada por mais seis meses. Mesmo não estando em vigor, já se
percebe a vontade de aplicá-la, como no caso de recente decisão relativa ao
Metrô de São Paulo para a instalação de sistema de reconhecimento facial, em
que se menciona a LGPD,[2] ou
quando se quis saber se era possível a aplicação da LGPD no caso de loja que usou
currículos impressos como material de embalagem de produtos.[3]
Com a promulgação de uma lei nova sobre o tema, tal como a
LGPD, estimula-se a mudança de percepção da sociedade quanto à necessidade de
levar-se esse tema a sério. Além disso, facilita-se a aplicação do direito na
solução de conflitos relativos a essas questões. Nesse sentido, no art. 2° da
LGPD se busca a harmonização dos interesses envolvidos, ao definir-seque os
objetivos dessa lei consistem na proteção dos direitos da personalidade, entre
os quais a privacidade, intimidade, honra e imagem, ao mesmo tempo em que
reconhecemos valores da livre iniciativa e da livre concorrência. A inovação
tecnológica,realizada pelos empresários e empreendedores, permite uma vida mais
confortável a todos, mas esta não pode ser feita à custa do sacrifício de
direitos fundamentais, assim como a proteção de dados pessoais não pode ser
obstáculo intransponível ao exercício da atividade econômica.
Definiu-se ainda quepraticamente toda e qualquer operação
com dados pessoais será regida pela LGPD. Em vista disso, surgem dúvidas sobre
como realizar essa atividade da maneira mais adequada possível, para que se cumpra
rigorosamente a lei.Nesse sentido, adotou-se, com acerto, a regra gerala ser
seguida: o princípio da boa-fé.
Aboa-fé é um dos princípios fundamentais de todo o direito,
não se limitando mais ao direito privado. Consiste na adoção da conduta correta
e adequada no agir em sociedade. Sua importância para o direito está no fato de
que contatos humanos geram expectativas de comportamento futuro e, por não ser
possível conhecer o âmago de cada um nessas situações, inevitável é a sensação
de insegurança pelo medo de ser enganado pelo outro. Além disso, pela
dificuldade natural de realização de completa avaliação dos riscos configurados
nas relações humanas, decisões equivocadas podem ser tomadas, as quais poderão
resultar em prejuízos no futuro.
Assim, pelo princípio da boa-fé, proíbe-se a mentira, o
abuso, o oportunismo, a falta de consideração e a incoerência de comportamento,
e impõem-se a transparência e a preservação da confiança legitimamente
despertada. De modo simplificado, age-se em conformidade com a boa-fé mediante
o cumprimento de três deveres: coerência, informação e cooperação.
Em se tratando de dados pessoais, a boa-fé é fundamental no
equilíbrio dos interesses envolvidos, porque há o temor produzido por não se
conhecer quem os solicita, tampouco se tem como avaliar os riscos advindos do
que se fará com os dados coletados, uma vez que podem ser usados de forma
lícita, mas também de forma ilícita.
Agora, ao lado dos artigos 187 e 422 do Código Civil, além
de dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, entre os quais os arts. 4º,
III e 51, IV, estabeleceu-se, no art. 6º da LGPD, que “[a]s atividades de
tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé (...)”.
Ainda no art. 6º da LGPD, estão elencados outros critérios
— denominados de princípios — que, no fundo, são desdobramentos dos
deveres da boa-fé.Basta observar que os critérios de finalidade, adequação e
necessidade no tratamento de dados pessoais são hipóteses de comportamentos
corretos, decorrentes do dever de coerência.
As garantias de livre acesso, qualidade e transparência se
relacionam com a observância do dever de informação entre as partes. Os
critérios de segurança, prevenção, não discriminação e responsabilização estão
ligados à necessidade de cooperação dos agentes de tratamento de dados, que são
o controlador, a quem competem as decisões referentes ao tratamento dos dados
pessoais, e o operador, que realiza o tratamento dos dados em nome do
controlador.
Desse modo, embora seja lícito o aperfeiçoamento da
atividade econômica por meio do tratamento de dados, não se pode, por exemplo,
adotar comportamento contraditório – também conhecido como “venire contra
factum proprium” e, portanto, contrário à boa-fé–ao fazer despertar a confiança
das pessoas para que elas forneçam dados em troca de vantagens e diversões, ou
insistir na venda de produtos e serviços mediante fornecimento do número do
CPF, telefone celular ou e-mail, pois há o risco de se fazer mau uso desses
dados, como na hipótese de perturbação do sossego de forma constrangedora e
invasiva mediante ofertas não solicitadas de produtos e serviços.
Considerando que o legislador teve consciência da
inevitabilidade da coleta de dados nos dias atuais, como ocorre em uma simples
navegação pela Internet ou com uso de aplicativos para celular, adotou-se a
ideia de que, ao menos, a pessoa - denominada titular dos dados - saiba o que
com estes será feito. No art. 9º da LGPD, tem-se dever específico de
informação sobre os procedimentos adotados no tratamento de dados, para que se
possa concordar com o seu fornecimento ou desistir de prosseguir com o acesso à
página ou com a instalação do aplicativo.
Vale destacar que, tão importante quanto o fornecimento do
consentimento do titular para que se autorize o tratamento de dados, conforme
previsto no art. 7º, I, da LGPD, é o respeito que a boa-fé exige quanto ao seu
uso. Por isso, torna-se imprescindível o cumprimento do dever de cooperação dos
agentes de tratamento de dados para com os titulares de dados. Conforme
disposto nos arts. 46 e 47 da LGPD, o princípio da boa-fé impõe a adoção de
procedimentos de segurança no armazenamento, eliminação e descarte dos dados,
para que terceiros não tenham acesso a essas informações. Isso vale tanto para
o simples ato de jogar papeis no lixo, quanto para sofisticadas plataformas e
bancos de dados.
Outras concretizações do dever de cooperação consistem na
facilitação da tutela dos direitos das pessoas pela indicação de encarregado
pelo tratamento de dados, que é pessoa indicada pelo controlador dos dados para
atuar como canal de comunicação entre este último com as pessoas e a Autoridade
Nacional para Proteção de Dados – ANPD,bem como se impõe o dever de
comunicar“(...) à autoridade nacional e ao titular a ocorrência de incidente de
segurança que possa acarretar risco ou dano relevante”, nos termos do art. 48
da LGPD, além da obrigatoriedade de tomada de providências para reverter ou
mitigar os efeitos dos danos causados nesses casos.
Ainda que, no limite, fosse possível a proteção dos dados
pessoais com base nas regras já existentes no ordenamento jurídico brasileiro,
previstas no art. 5º, X, da Constituição Federal, no art. 21 do Código Civil e
no art. 3º, II e III, do Marco Civil da Internet, espera-se que a LGPD
contribua para o aperfeiçoamento da atividade de tratamento de dados no Brasil,
reduzindo-se os riscos inerentes às relações cada vez mais mediadas pela
Internet. Mas, de qualquer modo, importa destacar que a solução para esses
problemas não está na edição de uma nova lei por si mesma, mas na aplicação de
sólidos institutos de direito civil, entre os quais, o princípio da
boa-fé.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede
de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra,
Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF,
UFC, UFMT, UFBA,UFRJ e UFAM).
Fonte: Consultor Jurídico