Nos últimos meses, a relevante discussão em torno da entrada
em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e suas sanções
administrativas [1] acabou por ofuscar inúmeras outras
questões importantes da nova legislação, entre elas a responsabilidade dos
controladores de dados pessoais e o risco de as organizações serem sancionadas
pelas autoridades administrativas e, simultaneamente, sofrerem uma enxurrada de
ações judiciais por parte dos titulares dos dados.
Isso porque, de um lado, a Autoridade Nacional de Proteção
de Dados (ANPD) tem, entre suas diversas competências, a de fiscalizar e
aplicar sanções em caso de tratamento de dados realizado em descumprimento à
legislação [2]. Esse controle "estatal", em
termos de proteção de dados, por meio da Constituição Federal e inúmeras leis
setoriais aplicáveis [3] já vem sendo de certa forma
desempenhado por entidades como o Ministério Público de alguns Estados, com
destaque para o do Distrito Federal, a Secretaria Nacional do Consumidor, do
Ministério da Justiça (Senacon/MJ), alguns Procons e órgãos reguladores
setoriais.
Como se não bastasse a possibilidade de aplicação de duras
sanções administrativas, tem-se que alguns setores econômicos, mormente os que
lidam diretamente com dados pessoais de consumidores, podem sofrer com uma
quantidade avassaladora de demandas judiciais, o que seria um efeito maléfico
deste importante marco regulatório.
Embora não se possa descuidar da importância da proteção dos
dados pessoais — reconhecida como direito fundamental já contemplado
em nossa Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.387 [4] — não se deseja também uma nova
sobrecarga de demandas de caráter repetitivo sobre possíveis violações de dados
pessoais no Poder Judiciário [5]. E o risco pode se tornar ainda maior
caso venha a ser adotada a teoria do chamado dano in re ipsa, aquele em
que o prejudicado sequer precisa comprovar ter sofrido um dano real para que se
configure a violação e passe a ter direito à reparação por danos morais, como
decidido pelo Superior Tribunal de Justiça em controvertido julgado do final de
2019 [6].
O caminho inicial para que se evite referida judicialização
é um trabalho de transparência e conscientização contumaz perante os titulares
de dados [7], esclarecendo e demonstrando, de forma
assertiva, que a porta de entrada para resolver qualquer celeuma que envolva
seus dados é diretamente com o seu respectivo controlador e não com o Judiciário [8].
Ou seja, visando ao cumprimento do princípio da LGPD da
responsabilização e prestação de contas [9], além de outros dispositivos, para
manterem um ambiente profícuo aos seus titulares de dados, de acordo com as
suas especificidades e o seu porte, os controladores devem "adotar
uma postura de soluções de conflitos dos seus usuários by design, pelo qual o
método de negociação, conciliação, mediação e de decisões administrativas deve
estar incorporado à arquitetura de seus sistemas e modelos de negócio" [10].
Nesse sentido, a LGPD dispõe que "vazamentos
individuais ou de acessos não autorizados" poderão ser objeto de
conciliação direta entre controlador e titular e, somente caso não haja acordo,
o controlador estará sujeito à aplicação das penalidades de que trata esta
previsão [11].
Porém, caso mesmo assim o conflito persista, e na ausência
de mecanismos próprios da ANPD, uma alternativa é a transposição da
experiência do Consumidor.gov.br, do Ministério da Justiça, para a
proteção dos direitos dos titulares de dados pessoais quando envolver relação
de consumo.
O Consumidor.gov.br, criado em junho de 2014, é um
serviço público e gratuito que possibilita a interlocução direta entre
consumidores e aproximadamente 500 empresas cadastradas, dos mais diversos
setores da economia. Monitorada pela Senacon, a plataforma é interligada também
a Procons, Defensorias e Ministério Públicos e, ao longo desse curto período de
existência, ganhou tamanha representatividade e importância que foi considerado
"o carro-chefe da Senacon" [12].
Não à toa, já existe uma corrente se firmando no Direito
Processual que exige que, para se ajuizar uma demanda consumerista, o autor
comprove não ter tido sucesso em alguma tentativa prévia de conciliação, com
destaque justamente para a plataforma do Ministério da Justiça. É o que
defendem Fernando Gajardoni e outros processualistas:
"Desse modo, é necessária a releitura do princípio do
acesso à Justiça, de maneira que — dentro de certos parâmetros e
desde que isso seja possível sem maiores dificuldades — não viola o
artigo 5º, XXXV, da CF e o artigo 3º, caput, do CPC, a exigência de prévio
requerimento extrajudicial antes da propositura de ações perante o Judiciário.
(...)
Neste quadrante ganha especial relevo a plataforma
Consumidor.gov.br. Trata-se de plataforma digital que permite a interlocução
direta entre consumidores e empresas, via internet, para solução de conflitos
de consumo, evitando, assim, o ajuizamento de ações perante o Judiciário
(especialmente JECs).
(...)
Fato é que a nova leitura do princípio do acesso à Justiça
leva à conclusão de que o Judiciário deve mesmo ser a ultima ratio" [13].
Solução semelhante, embora sob outra perspectiva, é
apresentada por Humberto Chiesi Filho, para quem, se o consumidor sequer
procurou a empresa para tentar resolver seu problema, não estaria configurada a
pretensão resistida apta a justificar o ajuizamento de uma demanda:
"Seguindo na construção de uma proposta de paradigma
que represente ao mesmo tempo um desestímulo à judicialização do cotidiano,
além de constituir uma ferramenta de solução do conflito subjacente, servindo
também como meio de configuração do interesse processual quando a solução
consensual for inviável, pode o juiz proferir uma decisão fundamentada
demonstrando que o autor é carecedor de ação interesse processual em razão de
inexistir uma pretensão resistida (carecedor de interesse necessidade) e
propiciar uma via para que as partes realizem ao menos uma tentativa de
autocomposição (...) para que a questão seja resolvida ou a resistência à
pretensão reste configurada e delimitada.
(...)
Vale observar que aqui não se propõe a criação de uma
condição prévia específica a ser cumprida pelo autor antes do início de uma
ação judicial, mas sim, uma opção para que seja evitada a extinção do processo
sem resolução do mérito ante a ausência do interesse processual quando o juiz
estiver diante de uma situação específica, assim já caracterizada nos
autos" [14].
A medida: I) desafogaria o Judiciário; II) permitiria que as
empresas reduzissem seus gastos — não é necessário contratar
advogados e prepostos, além de todos os custos diretos e indiretos de uma
demanda judicial [15]; e III) não importaria em grande
ônus ao consumidor, uma vez que o acesso é simples e pouco burocrático, além de
os prazos para resposta das empresas serem curtos.
Assim, o consumidor ganha com a rapidez na solução de seu
problema [16], as organizações ganham com a diminuição
de custos e o Judiciário ganha com a mitigação do risco de massificação de
demandas de proteção de dados, possibilitando a utilização de seus limitados
recursos para a solução de casos mais complexos.
Quando a ANPD estiver finalmente estruturada e em pleno
funcionamento, poderá criar ela própria um serviço correlato e especializado,
sob sua coordenação e fiscalização, pois é o órgão competente para apreciar
petições de titular contra controlador após comprovação de não solução de
reclamação no prazo estabelecido em regulamentação, bem como pela implementação
de mecanismos simplificados, inclusive por meio eletrônico, para o registro de
reclamações sobre o tratamento de dados pessoais em desconformidade com a
lei.
Portanto, o Poder Judiciário não deve ser a porta de entrada
para a resolução de controvérsias em massa envolvendo dados pessoais de
indivíduos, mas, sim, quando instado, um garantidor da constitucionalidade e
legalidade dos padrões de solução de controvérsias alternativas/adequadas dos
controladores.
Fonte: Consultor Jurídico